Azathoth


No centro do universo há um trono negro e ninguém, deus ou demônio, ousa se aproximar dele. Ao seu redor há companhia, servos, e uma melodia incessante pode ser ouvida, mas não por ouvidos humanos. Escoando por algo que somente podemos interpretar como flautas - e não é prudente se ocupar de desvendar que objeto disforme é aquele que produz ritmos tão desconexos -  a melodia mescla-se ao destino e narra sua lei eterna, e quem pode dizer que coisas mais ela produz?

No trono está aquele cuja tão poderosa melodia existe apenas para entreter e cujas criaturas ao seu redor existem apenas para servir. Informe e inominável, incognoscível e absoluto, aquele cujo meu intelecto não consegue expressar por palavas, nem minha sabedoria definir em símbolos. Não consigo determinar, logo não posso conceber, tem-se que há nada ali... Há apenas aquele trono negro no centro do universo e ninguém, deus ou demônio, ousa se aproximar dele.


Muitas das mitologias antigas adotaram uma realidade absoluta como causa primeira do universo para responder à questão fundamental que é a origem da existência, e embora haja certa relutância em chamar uma literatura criada, que é os "Mitos de Cthulhu", de mitologia, ele tem o corpo e a cosmogonia de uma, e até mesmo compartilha de um mesmo absoluto que remonta aos tempos dos antigos gregos, em sua riquíssima mitologia que tem como fundamento o Caos primordial.

Como já mencionado antes no artigo sobre o Cosmicismo, o Caos antecede o Cosmos (ordem), sendo sua causa e origem, pois é o "vazio" primordial do qual emerge o mundo, a origem de toda e qualquer significação, sendo ele mesmo a própria insignificação. O conceito de Caos se assemelha então ao conceito de absoluto de Hegel, pois por ser possibilidade de qualquer “coisa”, de possibilitar a emergência de novas “coisas”, o Caos não pode ser uma “coisa”, ou seja, não há determinação nesse mar de indeterminação, o próprio ser puro, uma unificação dos pensamentos de Castoriadis e de Hegel.

“O Caos não só não é uma coisa. O caos é sobretudo o princípio da possibilidade de tudo. Trata-se de uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se origina tudo, que é e não é, nela se nutre toda criação em qualquer área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário ou contingente.”

Então o Caos é aquilo que contém todas as coisas em estado latente, não-manifesto. Podemos dizer que antes da manifestação, o Caos conserva as coisas em uma latência que se encontra a apenas um grau da não-existência. É o abismo de onde se originam todas as coisas, a para onde estas voltarão ao final de sua era. Azathoth é a forma mais intensa de existência, ser puro, não-limitado por forma ou reação; mas essa existência pertence a um tipo diverso daquele a que estamos acostumados, aparecendo-nos, portanto, como não-existência, porque não combina com nenhum dos requisitos que a nosso ver determinam a existência.


Azathoth compreende uma existência além de todo tempo e espaço, pois sem ele não pode surgir espaço-tempo algum. A realidade é um mero capricho seu, e a vida é uma morte adiada, que somente ainda existe porque um dia existiu, mas morrerá como em outros ciclos morreu pois essa é a lei a qual até mesmo Azathoth obedece, e não importa quantos ciclos se passem, nada mudou e jamais mudará. Ele é e habita o caos, o que não se manifestou e origem de toda manifestação, pois:

Ele é tudo o que teria podido ser, mas não será jamais. Ele é o que teria podido ser e que, efetivamente, foi; tudo o que teria podido ser e que é efetivamente; tudo o que poderia ser e que realmente será.

É o Sultão demoníaco descrito no Necronomicon do árabe louco, mas também é o senhor de tudo e todas as coisas do poema intitulado "Azathoth", à luz de uma verdade mais coerente:

"P'lo dementado vazio o demónio me arrastou P'ra lá dos ninhos de luz nos limites do espaço me levou Até que nem tempo nem matéria ante mim puderam estar Que ali era só o Caos, sem forma nem lugar."

Sendo a perfeição suprema, e deixando claro que perfeição nada tem a ver com bondade, Azathoth transcede também a matéria, pois podemos constatar que o que é puramente matéria é desprovida dela em grande parte. Ele talvez seja o espelho mais perfeito e coerente de um absoluto nesse conjunto imenso que constitui a ficção, sendo um dos poucos que representa as perfeições divinas completamente.

Ele é o infinito, o sultão sem limites, o qual mesmo yog-sothoth constitui nada menos que uma parte e não o total. Esqueça Aquino e os que conjecturaram sobre seu amor infinito, o único atributo que ele possui e pode comunicar com vocês, filhos do fim do mundo, é a indiferença infinita.

Ele é a eternidade, a qual está além da roda do tempo, não somente exisitu como é a própria existência. Eterno sonhar e eterno despertar, nada que nasceu prevalece, exceto o que desde sempre prevaleceu.

Ele é sua própria causa. O que poderia dar origem a tamanho horror e tão infinito poder? Sendo origem e causa de todas as outras coisas ele mesmo não pode ter uma e a causalidade é um joguete em suas "mãos" que ele brinca sem saber o porquê.

Ele é único. Dois infinitos se excluem, o retorno à unidade é inevitável, estejamos prontos.

Ele é perfeito. O perfeito não é o desejável, o perfeito é a completude, ele não é bom e nem é belo, para os nossos conceitos e valores ele seria horrendo e maligno, e parecendo-nos mais semelhante com o diabo do que com o deus antropomórfico que criamos o rejeitariamos, mas ele é a verdade e nosso pai, não importando nossa tão limitada relativização. Sendo o caos ele contém tudo em si e não necessita de mais nada, nem pode adquirir o que quer que seja, nada lhe falta, exceto talvez sua própria consciência.

Ele é imutável. E este pode ser o único motivo de eu estar escrevendo esse texto e de você estar lendo. Pois os ciclos se repetem e ninguém exceto Azathoth sabe quantos já se repetiram, uma realidade morre no final de cada ciclo, mas o que é a morte senão um retorno à unidade?


No entanto apesar de ser poder puro, sem limites, Azathoth é pobre de consciência, sendo ele mesmo incapaz de lidar consigo e com o acidente pelo qual é responsável, da qual faz parte essa desnecessária esfera flutuante que carinhosamente chamamos de lar. Referenciado como "Deus idiota" Azathoth carrega tal alcunha não por possuir um intelecto retrasado, o que seria impossível, mas por se encontrar em completa inconsciência, necessitando de mensageiros e servos para satisfazer seus desejos que consegue manifestar.

Tente imaginar seu desespero se inserido numa realidade em que o deus que você ora e deposita suas esperanças todos os dias é uma entidade amorfa sem consciência que sequer sabe que você existe e que tiraria sua vida mais rápido do que o intervalo de uma batida do deu coração caso tomasse conhecimento de sua miserável existência. É exatamente esta a verdade por trás das cortinas no universo dos Mythos e reze para que não estejamos no mesmo barco, ou melhor, se for o caso nem perca seu tempo, a melhor resposta que você terá é não tê-la.

Para alguns estudiosos dos Mythos o universo é meramente um sonho de Azathoth, invariável que é, por ser perfeito e eterno, seu despertar é inevitável e neste dia ele irá consumir todo o cosmos e os deuses até que novamente só haja ele, é o ciclo da existência, a ordem tendendo ao caos e vice-versa. Depois do verão vem o inverno, e depois do inverno, o verão.

Jamais fez tamanho sentido ler que a ignorância é definitivamente uma benção, penso que conhecer a verdade resultaria em uma espécie de "Síndrome do rei vermelho", saber que a qualquer momento o destino pode acordar e o presente simplesmente desaparecer, sem aviso, sem paraíso, apenas o esquecimento... Isso deve ser terrível... Qual homem gostaria de viver em um universo bomba-relógio? Qual homem criaria seu filho com tanto amor e zelo apenas para condená-lo à uma morte prematura, sem beleza alguma?

Mas é assim que é, e aceita ou não, uma verdade segue sendo uma verdade, Azathoth é o fim de todas as coisas, e nada pode escapar de seu toque de aniquilação. Mesmo Clark Ashton Smith se refere a ele com temor e conjectura:

"A sugestão de qualquer relação simulacral ou conexão com Azathoth (mesmo do tipo mais remoto de vestígios) é simplesmente avassaladora em seu terror; pois Azathoth não é o demônio animador daquele espaço abrangente que Einstein em sua teoria mais recente e um certo poeta desconhecido em um esquecido "Ode ao Abismo" há muito esquecido representou como devorador do universo material?"

Com última teoria de Einsten ele se refere à relatividade geral, a qual previa a existência de buracos negros, entidades universais que literalmente "devoram" tudo que se aproxima demais e que pode representar talvez uma manifestação de Azathoth, pois é ele quem irá apagar a luz de nossa galáxia, e inclusive já o fez em algum futuro remoto, pois o tempo como conhecemos nada significa para ele, do abismo.


Quando os sonhos cessarem e as flautas não mais tocarem a realidade estará de volta ao pó, e a humanidade perceberá quão tolas foram suas crenças. Alguns pensarão que é o arrebatamento e talvez recebam sua morte de braços abertos sonhando com um paraíso que nunca alcançarão; outros, não crentes crerão e hão de trair a si mesmos, pois aceitarão em segundos uma verdade que rejeitaram a vida inteira, verdade que nunca se concretizará. A ciência verá que suas leis não são eternas e muito menos necessárias, e que suas descobertas não podem salvá-los, talvez no fim, quando o medo sobrepujar todo e qualquer orgulho entenderão que o universo e sua falsa ordem são perecíveis, apenas o abismo prevalece.

Comentários

  1. Comentário sumiu aqui. Então bora de novo: Maravilhosa de blog mano, muito bom mesmo.

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  2. Eu aqui lendo essa delícia de novo

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  3. Que tudo seja erupção e colapso. Que vastos pedaços arrancados do solo voem e sejam reduzidos a poeira; que os planetas componham no firmamento arabescos bizarros, contorções grotescas, figuras mutiladas e assustadoras. Possam os turbilhões de chamas elevar-se num ímpeto selvagem e invadir o mundo inteiro, para que mesmo o menor dos seres vivos saiba que o fim está próximo. Que toda forma se torne informe e que o caos engula numa vertigem universal tudo o que, neste mundo, possua estrutura e consistência. Que tudo seja uma demente colisão - estertor colossal, terror e explosão, seguidos de um silêncio eterno e de um esquecimento definitivo. Que nestes momentos finais os homens vivam numa tal temperatura que tudo quanto a humanidade nunca sentira em matéria de pesar, aspiração, amor, ódio e desespero estoure neles numa devastadora explosão. De tal insurreição, na qual ninguém mais encontraria sentido para a mediocridade do dever, em que a existência se desintegraria sob a pressão de suas contradições internas, o que restaria afora o triunfo do Nada e a apoteose do não-ser?
    – Emil Cioran (Nos cumes do desespero).

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