Yog-Sothoth


Um anjo resplandecendo no paraíso; e seu semelhante blasfemando no inferno; um velho barbudo e benevolente zelando, invisível, por seus filhos; um talentoso artista de Long Valley e um escritor nascido em Rhode Island, Providence. O que estas coisas tem em comum? Todas São Yog-Sothoth, o círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em parte alguma. O espírito que tudo habita, mas que todas as coisas somadas não chegam perto de compreender sua totalidade, o deus que é a soma de todos os outros deuses mas é também a soma de todos os demônios, e é além disso ele mesmo, o Um Art Tawil, que o escriba traduz como "Eterno".

Agora, e se eu lhe disesse que o arquétipo dos anjos com suas asas brancas e perfeitamente esculpidas é, à luz da verdade final, deuses amorfos e indiferentes, E que o velhinho antropomorfo e de amor infinito é na verdade um demônio onipotente e inconsciente a qual eles servem...

"Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito" 

Essa frase de William Blake representa perfeitamente a situação do universo dos Mythos, pois ainda que portões e as barreiras de nossa mente finita impeçam nossa compreensão da verdade final, a realidade é infinita, e infinito é sinônimo de Yog-Sothoth.

Nada que existe escapa à sua presença e toda presença no passado, no futuro e mesmo agora é apenas um mero aspecto ínfimo de seu ser. Eu, você, o universo, tudo é um em Yog-sothoth e sua unidade compreende a totalidade das coisas. Ele é o que em algumas doutrinas foi chamado de Akasha, e talvez até mesmo uma parte da essência ou mente de Azathoth. Se manifestando em diversos graus da existência ele é cultuado por diversas raças, povos e culturas que sequer sabem a real escala do deus e qual a indescritível sensação de estar em sua presença.


"Yog-Sothoth conhece o portal. Yog-Sothoth é o portal. Yog-Sothoth é a chave e o guardião do portal. Passado, presente e futuro, todos são um em Yog-Sothoth."


Nesta seção discutiremos as concepções da entidade Yog-Sothoth criada por Lovercraft e suas relações com os campos Mórficos descritos por Sheldrake, as esferas de ordem implícita e explícita de David Bohm, o inconsciente coletivo de Jung e o Akasha da filosofia esotérica, este que já foi abordado anteriormente aqui no blog.

Em 1912 Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço publicou uma teoria sobre imagens primordiais, imagens que se manifestam na psique e que poderíamos observar uma relação com a mitologia. Por volta, de 1917, Jung começa a se referir a elas como dominantes do inconsciente coletivo ou "pontos nodais".

Segundo Jung, o inconsciente coletivo não deve sua existência a experiências pessoais; ele não é adquirido individualmente. O inconsciente pessoal é representado pelos sentimentos e idéias reprimidas, desenvolvidas durante a vida de um indivíduo. Ele não se desenvolve individualmente, é herdado. É um conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade.

"Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos".

O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. A pessoa não se lembra das imagens de forma consciente, porém, herda uma predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam. Sendo assim, a teoria estabelece que o ser humano nasce com muitas predisposições para pensar, entender e agir de certas formas.

Jung adquiriu a sua primeira impressão das camadas impessoais do inconsciente através de um sonho que teve durante a viagem aos Estados Unidos com Freud em 1909. Sonhou com uma casa (chamou-lhe “minha casa” no contexto do sonho) que tinha numerosos níveis.

No sonho, ele explora os andares da casa: começa pelo andar nobre (a idade atual), desce ao subsolo (o passado histórico recente e continua descendo através de muitos porões (o passado histórico antigo, como o grego e o romano, e finalmente o passado pré-histórico e paleolítico). Esse sonho respondeu a uma questão que ele vinha fazendo durante a viagem: “Em que premissas se fundava a psicologia freudiana? A que categoria do pensamento humano ela pertence?” A imagem onírica, escreve ele, “tornou-se para mim uma imagem-guia” para como conceber a estrutura psíquica. “Foi a minha primeira suspeita da existência de um a priori coletivo subjacente na psique pessoal."

O Sonho, que é um elemento central nos Mythos, foi um dos campos da psique mais estudados por Jung, e talvez tenha sido a razão que tenha levado Lovecraft a se interessar por seu trabalho e tomado emprestada à ideia de arquétipo, a partir da qual ele enriqueceu a profundidade de sua cosmogonia.

É impossível não fazer um pararelo entre a semelhança dos arquétipos de Jung com o mundo das ideias de Platão, que inegavelmente exerceu influência sobre seu raciocínio, e Samuels, um estudioso do trabalho de Jung, evidencia:

"Platão fala de ideias originais, das quais são derivadas toda a matéria e as ideias subsequentes. Essas ideias estariam nas mentes dos deuses antes da criação do mundo; por isso, as ideias platônicas precedem a experiência. Mas há uma distinção básica: uma faceta da abordagem de Jung é que os arquétipos promovem experiências fundamentais de vida. Contudo as formulações posteriores de Jung incorporam um elemento transcendente segundo o qual os arquétipos estão de alguma maneira além do tempo e do espaço."

Aqui tenho que ressaltar algo importante, pois Jung sempre afastou a idéia da metafísica, alegando ser um cientista empírico e não um filósofo, o que a longo prazo gerou diversas contradições no seu pensamento. Inicalmente Jung concebeu os arquétipos como algo que se desenvolveu a a partir dos instinstos, implicando que o arquétipo fosse decorrência de processos biológicos. No entanto, ao mesmo tempo ele tentava afirmar a eternidade e imutabilidade dos arquétipos, e algo herdado pela humanidade não pode de forma alguma ser eterna. Mais tarde fica claro que estas confusões ocorreram por ele não haver diferenciado arquétipo de imagens arquetípicas, algo que só fez anos depois.

Portanto, inicialmente o arquétipo aparece diretamente associado ao cérebro e sua estrutura hereditária, mas com o tempo esta questão vai se tornando mais complexa. O próprio Jung conflita com suas postulações anteriores ao dizer que as imagens primordiais antecedem o homem histórico:

"Só compreendemos aquele tipo de pensamento que seja uma mera equação da qual não se extrai senão o que aí se colocou. É a operação do intelecto. Mas, além deste, há também um pensamento nas imagens primordiais, nos símbolos, que são mais antigos que o homem histórico e nascidos com ele desde os tempos mais antigos e, eternamente vivos, sobrevivem a todas as gerações e constituem os fundamentos da nossa alma"

As imagens primordiais possuiriam uma espécie de organização eterna (que sempre existiu e sempre existirá), não constituindo, portanto, algo criado; antecederiam a existência do homem e seriam os fundamentos da alma, “as matrizes de qualquer pensamento que nossa consciência seja capaz de cogitar”. Esta concepção conflita com a anterior, na qual o arquétipo (ou imagem primordial) foi criado em conjunção com as condições da Terra, por repetição.


Você deve estar se perguntando como o que foi dito se relaciona com yog-sothoth, e é isso que eu vou demonstrar daqui em diante. Pois Yog-Sothoth é chamado de o arquétipo supremo, e portanto a origem e modelo de todas as coisas, não sendo errado então, de certa forma dizer que todas as coisas foram feitas à sua imagem e semelhança.

"Todas as linhas descendentes de seres de dimensões finitas, e todos os estágios de crescimento em cada um desses seres, são apenas manifestações de um ser arquetípico e eterno no espaço externo. Cada ser local - filho, pai, avô e assim por diante - e cada estágio do ser individual - bebê, criança, menino, jovem, homem velho - é apenas uma das fases infinitas desse mesmo ser arquetípico e eterno, causado por uma variação no ângulo do plano da consciência que o corta. Randolph Carter em todas as idades; Randolph Carter e todos os seus ancestrais, humanos e pré-humanos, terrestres e pré-terrestres; todas essas eram apenas fases de um "Carter" final e eterno fora do espaço e do tempo - projeções fantasmas diferenciadas apenas pelo ângulo no qual o plano da consciência cortou o arquétipo eterno em cada caso."



Nos anos 20, o conceito de campos morfogenéticos foi criado  em função do crescimento e das formas adotadas pelos seres vivos, e permitiu explicar, por exemplo, que um embrião humano dispõe - para orientar-se em seu crescimento - de campos morfogenéticos que servirão de molde para a orelha, o braço, etc., cumprindo a função de arquétipos registrados no akasha ou luz astral. O DNA das nossas células não contém em si a memória genética, mas permite "sintonizar" com o campo morfogenético de uma certa maneira que é geneticamente determinada, assim como a antena de um aparelho de televisão permite sintonizar com determinadas ondas emitidas pelas estações.   

Mas Sheldrake tomou este conceito, limitado ao estudo do crescimento dos seres orgânicos, e o ampliou radicalmente, chamando-o de campo mórfico e aplicando-o a todas as áreas da natureza. Sua hipótese da causação formativa sugere que "os sistemas auto-organizadores, em todos os níveis - inclusive as moléculas, os  cristais, os tecidos, organismos e sociedades de organismos -, são organizados por campos mórficos". Esses campos mórficos podem ser considerados por um estudioso da tradição esotérica como uma espécie de prateleiras virtuais do akasha ou luz  astral, onde "tudo está escrito" segundo os místicos. 

Morfo vem da palavra grega “morphe” e que significa forma. Os Campos Mórficos são campos de forma. Campos Mórficos ou Campos M, são estruturas organizadoras invisíveis que moldam ou dão forma a todos os seres, tais como animais, plantas e cristais e também têm um efeito organizativo sobre o comportamento.

Os Campos Mórficos, através da sua própria estrutura moldam células, tecidos e organismos. Nas palavras de Sheldrake, “como os campos conhecidos pela Física, eles ligam coisas semelhantes através do espaço, embora, aparentemente, não haja nada entre essas coisas; mas, além disso, eles ligam coisas através do tempo”.

A ideia é que os Campos Mórfogenéticos que dão forma a uma planta ou animal em crescimento, surgiram das formas dos organismos anteriores da mesma espécie. É como se um embrião se “sintonizasse” com as formas dos membros anteriores da espécie. O processo através do qual isso acontece, é denominado “ressonância mórfica”.

Tendo isso em vista, podemos facilmente associar esse conceito ao próprio Yog-Sothoth, que é o Arquétipo Supremo, que dá forma a todas as coisas, por todo o tempo-espaço, com a diferença que ele teria o caráter de um campo morfico eterno:

"Os arquétipos, pulsando as ondas, são as pessoas do abismo final - sem forma, inefável e adivinhado apenas por raros sonhadores nos mundos de baixa dimensão. A principal delas era informar o próprio SER. . . que de fato era o arquétipo de Carter. O fervoroso zelo de Carter e todos os seus antepassados ​​por segredos cósmicos proibidos era um resultado natural da derivação do ARQUÉTIPO SUPREMO. Em todo mundo, todos os grandes assistentes, todos os grandes pensadores, todos os grandes artistas são facetas dele (Yog-Sothoth)." 

Em 1980, David Bohm formulou a teoria da ordem implícita que postulava que a totalidade da ordem abrangente não pode se tornar manifesta para nós; somente um certo aspeto dela se manifesta. Quando trazemos essa ordem abrangente para o aspeto manifesto, temos uma experiência de percepção. Mas isso não quer dizer que a totalidade da ordem seja apenas aquilo que se manifesta. 

A sugestão básica da teoria de Bohm é a de que vivemos num mundo multidimensional e a nossa moradia está situada no nível mais óbvio e superficial: o mundo tridimensional dos objetos, espaço-tempo, ou seja, na ORDEM EXPLÍCITA. Neste nível, explica Bohm, “a matéria é de graduação densa, e embora possa ser descrita em relação a si mesma, não é a maneira de explicá-la e entendê-la com clareza. Infelizmente, nesse nível, é que muitos físicos trabalham hoje em dia, apresentando descobertas na forma de equação de significado obscuro.

Isto remete a ideia de mundo que Carter adquiriu nocão por intermédio das "ondas" de conhecimento em "Through The Gates of The Silver Key":

"Então as ondas aumentaram em força e procuraram melhorar sua compreensão, reconciliando-o com a entidade multiforme da qual seu fragmento presente era uma parte infinitesimal. Eles lhe disseram que toda figura do espaço é apenas o resultado da interseção por um plano de alguma figura correspondente de mais uma dimensão - como um quadrado é cortado de um cubo, ou um círculo de uma esfera. O cubo e a esfera, de três dimensões, são assim cortados de formas correspondentes de quatro dimensões, que os homens conhecem apenas através de sonhos e conjecturas; e estes, por sua vez, são cortados de formas de cinco dimensões, e assim por diante, até as alturas estonteantes e infinitas do infinito arquetípico. O mundo dos homens e dos deuses dos homens é meramente uma fase infinitesimal de uma coisa infinitesimal - a fase tridimensional daquela pequena inteireza alcançada pelo Primeiro Portal, onde “Umr at-Tawil dita sonhos aos Antigos. Embora os homens o considerem realidade, e considerem os pensamentos de seu original de muitas dimensões como irrealidade, na verdade é exatamente o oposto. Aquilo que chamamos substância e realidade é sombra e ilusão, e aquilo que chamamos de sombra e ilusão é substância e realidade."

Em contraste a Ordem Explícita, Bohm inseriu o conceito da Ordem Implícita, a fonte ou fundo abrangente de toda a nossa experiência física, psicológica e espiritual. Esta fonte está situada numa dimensão de extrema sutileza, ou seja, na OrdemSuperimplícita. E não termina aí, pois além dela pode-se postular muitas ordens semelhantes “mergulhando numa fonte ou esfera infinita n-dimensional”. Numa analogia, pode-se dizer que a Ordem Explícita é o universo espaço-temporal em que vivemos, e a Ordem Implícita o universo do não-manifestado.

A teoria da ordem implícita é uma reflexão sobre as relações misteriosas entre o oculto e o manifesto, o reino espiritual e o  reino material e humano. Já o enfoque mórfico de Rupert Sheldrake, mais prático, mostra a relação entre o mundo físico e a luz  astral. As diferenças entre os dois pontos de vista são poucas, porque a teoria de Sheldrake, aparentemente limitada, pode ser levada às últimas conseqüências, explicando a formação e o descanso periódico dos universos que sao criados por ressonância mórfica, talvez a principal diferença entre os enfoques de Bohm e Sheldrake esteja apenas no estilo e na formação dos dois pesquisadores, um físico e o outro biólogo. 

No final, podemos concluir que Yog-Sothoth é mais do que uma mera entidade de poder inigualável, é uma "força" ou engrenagem fundamental que é estudada tanto pela ciência, quanto pelo esoterismo, cada qual com sua interpretação e nomenclatura, mas todas convergindo pra um único ser, o Arquétipo Supremo, a verdade absoluta, a chave e o portão, muito além de uma mera criação da mente conturbada de um sonhador alucinado.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Azathoth

Através dos portões da chave de prata

O Caos e os Arquétipos: Os conceitos que fundamentam o universo de Lovecraft