Hierarquia dos deuses em Lovecraft


Obs: Este artigo está em construção

Esse é um post especial, em que tentarei da forma mais clara possível estabelecer uma base sólida para hierarquizar os deuses dos Mythos. Lovecraft criou seres que estariam muito além de nosso entendimento e compreensão, e apesar de ser inpossivel quantificar o poder destas criaturas, podemos, baseados em seus conceitos, montar uma pirâmede existencial com alguns destes seres.

Minha idéia ao devotar tanto tempo para reunir diversas informações de tantos contos e artigos com a finalidade de elaborar uma hierarquia, não é de forma alguma exaltar os poderes e cultuar a "onipotência" desses seres, mas organizar e enriquecer com conceitos novos essa Mitologia fantástica criada por Lovercraft, um verdadeiro tesouro literário ímpar, que apesar de ter se espalhado e se tornado reconhecido, após sua morte, permanece desconhecido numa visão geral, se é por benção ou infelicidade eu não sei dizer.

Azathoth - O Caos primordial


Azathoth é popularmente conhecido como o deus onipotente dos Mythos que criou o universo enquanto dormia, em seus sonhos, e que acaso despertasse toda a existência desapareceria, como em um piscar de olhos.

Mas a verdade é que quando mergulhamos mais a fundo percebemos que não é tão simples assim. Nunca foi estabelecido em nenhum conto canônico de Howard que Azathoth sonhasse o mundo, e há quem diga que é yog-sothoth e não Azathoth o verdadeiro deus e criador. Então, meu objetivo aqui, como alguém que tem mergulhado nos mythos por anos, é separar o que é verdade de mentiras e suposições.

1-1: Azathoth é o criador e origem de tudo? 

Para que uma cosmogênese que trabalhe com uma causa sui, ou causa primeira seja coerente é necessário que o ser ou não-ser que represente esta primordialidade possua as chamadas "Perfeições divinas". A realidade do Mythos é infinita e eterna, e portanto autossuficiente, absoluta; isto implica necessariamente em unidade, pois duas coisas essencialmente diferentes não permitem o infinito já que uma necessariamente limita a outra, uma vez que não são iguais.

Na passagem que relata a infinidade do universo de Howard, Azathoth é descrito como um ser ilimitado, e se tratando de uma entidade que existe além do próprio espaço-tempo só pode ele mesmo ser o próprio universo. Além do mais é também descrito como uma ameaça FINAL e como a entidade ÚLTIMA; com ênfase nos adjetivos de terminação, que indicam não haver nada além.

"Em tais viagens haviam incalculáveis perigos imprevisíveis, assim como uma terrível ameaça final: O ser que murmura abominavelmente além dos limites do cosmos ordenado, ali onde nenhum sonho pode chegar. Esta última entidade malígna e amorfa do Caos mais profundo, que blasfema no centro de toda a infinidade é o ilimitado Azathoth, o demônio sultão, cujo nome nenhum lábio se atreve a falar em voz alta, e que corrói faminto em escuras e inconcebiveis câmaras além do tempo, entre o enlouquecedor bater de tambores, e fina e monótona lamúria de flautas blasfemas"

The Dream-Quest of Unknow Kadath

A mesma passagem que sugere infinidade, também demonstra uma transcendência temporal, excluindo a sempiternidade para dar lugar a atemporalidade, sinônimo do eterno que constitui mais uma das Perfeições divinas.

O verso do Mythos é cíclico, o único modelo de criação que permite a existência de um absoluto, pois aquele que tem de ser perfeito não pode variar, e portanto nunca deixou de criar.

"Os teosofistas fizeram conjecturas sobre a apavorante imensidão do ciclo cósmico, do qual nosso mundo e a raça humana constituem meros incidentes transitórios. Eles aludiram a estranhas sobrevivências em termos que congelariam o nosso sangue se não fossem mascarados por ameno otimismo."

A soberania existencial não para por aqui, são diversas as vezes, em meio a poucas menções, que Azathoth é descrito como senhor de tudo, também como a entidade que comanda, externamente, todo o espaço-tempo e os universo que ele permite, das quais o destino é guiado pelas flautas de seus servos em meio ao caos.

"Finalmente, houvera uma sugestão de vastas sombras saltitantes, de monstruosa pulsação subacústica e de tênue sopro monótono de uma flauta invisível — mas isto fora tudo. Gilman decidiu que havia adquirido aquela última noção das coisas que lera no Necronomicon sobre a indiferente entidade Azathoth, que comanda todo o tempo e o espaço de um trono negro no centro do Caos."

"Como poderia ter certeza de não pousar naquela encosta de luz esverdeada de um planeta distante, no terraço ladrilhado acima da cidade dos monstros tentaculados em algum lugar além da galáxia ou nos vórtices negros espirais daquele vazio extremo de Caos onde reina o indiferente sultão demoníaco Azathoth?"

The Dreams in The Witch House

No verso 22 de "Fungos de Yuggoth" o poema que leva o nome de "Azathoth" fala mais uma vez de uma viagem para além dos portões, além da matéria e realidade, e da soberania do caos.

"P'lo dementado vazio o demónio me levou
Passados ​​os aglomerados brilhantes de espaço dimensionado,
Até que nem tempo nem matéria ante mim puderam estar 
Que ali era só o Caos, sem forma nem lugar.
Ali o Senhor do Tudo na escuridão murmurava Coisas que ele sonhara, mas não conseguia entender"

A alcunha de senhor de tudo, em meio ao infinito, apenas reforça a menção dos sacerdotes barbudo em "A procura de Kadath" que menciona o caos sem limites. Nada o detém, nada o restringe, a própria completude, outra das Perfeições divinas.

E mesmo que boa parte dessas informações tenha sido adquirida pelos personagens através do Necronomicon, inclusive o próprio nome "Azathoth", não se pode tratar o que está escrito neste livro como inverdade, talvez tendencioso, mas em diversas narrativas os protagonistas que se encontram atravessando os portões ou viajando para além da realidade ilusória se lembram da narrativa do Necronomicon, pois ela fala exatamente sobre o que eles pessoalmente estão experimentando e vivenciando.

1-2: O conceito de Azathoth

Azathoth é descrito como o caos primordial, que como eu já dissertei neste outro artigo, é uma das causas primeiras das principais cósmogêneses mitológicas, das quais Lovecraft sofreu grandes influências. Dessa informação se conclui que mesmo entre todas as possibilidades de origem, Lovecraft escolheu o khaos e isso não poderia estar mais distante de não ter um propósito, pois é dessa escolha que vai surgir a premissa mais importante de sua obra, o cosmicismo.

Um mundo que nasce do Caos resulta num Kosmos sem significado inerente e isso dá espaço para Howard explorar o mais profundo medo, que é o elemento principal em seus contos. Se o Kosmos e a vida que ele suporta não tem um propósito, não há paraíso nem purgatório, você vive apenas para morrer pois sua existência é um mero acidente. Essa noção de que nós, seres humanos, não somos mais importantes do que os vermes que rastejam sobre a terra, que nossa verdade e ciência estavam erradas é o tempero da obra, onde este choque de realidade leva ao terror, desolação e perda de um alicerce no qual se apoiar, tudo isto só sendo possível em um mundo que nasce do Caos, pois o caos é a própria insignificação.

Então, afinal o que é Azathoth?

A única forma que encontrei para definir Azathoth é como o próprio Absoluto, o Caos em sua forma mais pura. Segue uma breve explicação do que é o absoluto e sobre o conceito de Caos, lembrando que já temos um post sobre esses dois temas aqui no blog:

No latim antigo a palavra ‘absoluto’, que não tem paralelo no  grego – no qual a palavra mais próxima talvez seja o απειρον (ilimitado) –, era empregada, além do fórum jurídico, no sentido de qualificar algo que é independente de qualquer outra coisa, que é completo, perfeito, autônomo, aquilo que Aristóteles denominou autarquia, que é princípio suficiente de si-mesmo.

Em outras palavras, Absoluto é o Ser cuja existência é  incondicionada (o em-si-para-si). Absoluto é aquele no qual todas as coisas estão implicadas mas não pode ser reduzido às coisas, condicionado ou dependente destas, mas o contrário.

Lembrando que para ser absoluto é necessário ter as chamadas "perfeições divinas", isto é:

- Asseidade 
- Eternidade
- Infinidade
- Imutabilidade
- Completude 
- Simplicidade

E não se pode ter uma sem ter a outra. Eternidade, infinidade e Imutabilidade de Azathoth já foram explicitamente demonstradas acima e mencionadas diretamente por Lovecraft. O conceito de Caos em que foi criado entrega as outras três perfeições, como veremos a seguir.

Para os gregos, tanto no pensamento mítico quanto filosófico, é notório a anterioridade do Caos em relação ao cosmos. Cornelius Castoriádis, filósofo grego, pondera sobre esta idéia: "Na teogonia de Hesíodo, lemos que no princípio havia apenas o Caos. Caos, em grego, no sentido próprio e primordial, significa vazio, nada. É do vazio mais total que o mundo emerge. Mas, já em Hesíodo, também o universo é caos, no sentido de que não é perfeitamente ordenado, de que não se submete a leis plenas de sentido. No princípio, reinava a desordem mais total, depois, foi criada a ordem, o cosmos. Contudo, nas ‘raízes’ do universo, para além da paisagem familiar, o caos continua a reinar soberano."

Emmanuel Carneiro Leão nos elucida, em seu artigo “O Sentido Grego do Cáos”, que o caos é impensável, pois não se trata de uma “coisa” (determinada): “só é possível pensar sobre o que tem sentido, nunca sobre o princípio de ordem e articulação da possibilidade de haver sentido. É o primeiro aceno que nos deixou a experiência grega: o cáos só se dá na impossibilidade e como impossibilidade de se pensar, de se falar ou de se agir sobre ele.”
Para os gregos, no princípio, era o Caos. Caos é a personificação do Vazio primordial, fonte de toda criação (e, portanto, anterior a ela), anterior a qualquer ordem do mundo.

Etimologicamente, caos remete a, como diz Junito de Souza Brandão, “abrir-se, entreabrir-se, significa abismo insondável.” O Caos, assim, mantém-se sempre em aberto, aberto à possibilidade da criação. Precisamente por ser possibilidade de qualquer “coisa”, de possibilitar a emergência de novas “coisas”, o Caos não pode ser uma “coisa”, ou seja, não há determinação do caos nesse mar de indeterminação, embora falar de indeterminação já seja um modo de determiná-la. 

Assim, Carneiro Leão nos coloca o segundo aceno da experiência grega: “o cáos não só não é uma coisa. O cáos é sobretudo o princípio da possibilidade de tudo. Trata-se de uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se origina tudo, que é e não é, nela se nutre toda criação em qualquer área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário ou contingente.” Sabe-se que não é somente o mundo grego que nasce do Caos. No princípio das religiões, era o Nada / o Caos, a partir de um deus começaria a criação. Entretanto nos deteremos no caos grego.

E apesar de isso ser o suficiente para que se entenda o porque o Caos é, e não faria sentido não ser, o princípio de tudo, talvez ainda esteja confuso o porque o Caos não é uma coisa em si, no sentido de ser determinado, então eu finalizo com a relação que se faz entre o caos e o absoluto com a explicação mais perfeita possível tirada do blog do Antônio Mallorca:

1- De maneira geral, chama-se de “positivo” em filosofia (por exemplo, na filosofia “positivista”) o que é dado: em particular, o que é dado pelos sentidos. O que é dado é determinado. O que é determinado é o que tem termo ou limite que o circunscreve (seja quantitativa, seja qualitativamente). Determinar uma coisa é, portanto, estabelecer o termo além do qual ela não é, ou opô-la ao que ela não é. O número 3, por exemplo, se determina em oposição a 1,2,4,5... e todos os demais. O azul, por exemplo, se determina em oposição ao verde, ao amarelo, ao vermelho... a cor, em oposição à forma, ao volume, ao peso... Por isso, a determinação é negação, como dizia Spinoza: determinatio negatio est. Para determinarmos o que alguma coisa é, negamos – consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente – inúmeras coisas dela. Ora, o que consideramos “positivo” ou “positividade” é o que sofreu determinação ou negação, isto é, o que foi determinado ou negado. Por exemplo, um automóvel Volkswagen azul é uma positividade, um dado no mundo. Trata-se de um automóvel (e não de um trem, um avião, um tanque, uma casa...), Volkwagen (e não Chevrolet, Honda, Ford...) azul (e não verde, amarelo, vermelho...). O positivo, enquanto determinado, jamais pode ser absoluto.

2- O absoluto (de ab-soluto) é o que basta a si próprio: o que é independentemente de qualquer outra coisa. Sendo assim, ele não é determinado, que, como vimos, é sempre determinado em relação a outra coisa. O absoluto é o indeterminado. Como se chega ao indeterminado? Abstraindo tudo o que é determinado. Através, portanto, do que chamei de “abstração absoluta”. A abstração absoluta nega tudo o que é determinado. Ao final, o que fica? Nada fica de determinado; nada de positivo; nada do que foi negado. No entanto, fica algo indeterminado, que é a própria negação de tudo o que é determinado. Tal é a negação negante. É ela o absoluto.

Fecho esse tópico com o trecho de fungos de Yuggoth que melhor resume tudo o que foi dito aqui, uma representação perfeita do absoluto, e um desenho perfeito do próprio caos, sem determinação e além de todas as coisas:

"[...]Até que nem tempo nem matéria ante mim puderam estar 
Que ali era só o Caos, sem forma nem lugar.
Ali o Senhor do Tudo na escuridão murmurava Coisas que ele sonhara, mas não conseguia entender"

1-3: Interpretação de Clark Ashton Smith

O amigo mais íntimo de Lovercraft, e mais ávido correspondente, Clark Ashton Smith, mesmo depois de ter trocado cartas com Howard durante longos anos e lido e relido quase todas as suas obras; considerou - através de uma correspondência para Augusto Derleth - Azathoth ancestral de todos os outros deuses, reforçando todos os pontos levantandos nesse artigo até agora.

"Azathoth, conhecido em algum lugar como "o caos nuclear primordial", é o ancestral de toda a tripulação, mas ainda mora no espaço exterior e ultra-dimensional, junto com Yog-Sothoth, e o flautista demoníaco Nyarlathotep, que participa do trono de Azathoth."


Lembrando que uma obra de ficção é um contexto imaginário de um espaço sem limites que pode trabalhar com um universo infinito ou finito, então o que importa aqui é ter consciência que a obra em questão é um cenário fictício que assume uma realidade em que só o universo (totalidade) da obra em questão existe, e nada além dele.

Dentro desse contexto podemos entender que Azathoth é a totalidade da obra em si, a própria obra e o próprio universo, todo o resto que existe e não é azathoth existe por causa dele.
Sendo a obra um retrato de uma realidade infinita como ela própria deixa explícita em vários momentos que já foram aqui mencionados, uma vez que azathoth é descrito como um ser sem limites e por ser a obra "encarnada" é também ele infinito, o próprio absoluto, a hierarquização máxima de um ser.

Yog-Sothoth - O portão e a chave


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