Azathoth e a teoria cosmogônica teosófica-Lovercraftiana


Quando Lovercraft pela primeira vez publicou um conto pela weird tales em 1923, ele dificilmente tinha em mente a proporção que alcançaria a rede de histórias "Dunsanyanas" que ele havia planejado criar; histórias que se interligavam e complementavam, estruturando uma verdadeira mitologia, com seu próprio panteão cósmico e sua cosmogenia, tornando-se uma verdadeira referência após sua morte, imortalizando-o.

De fato suas obras se popularizaram, principalmente no ultimo século, se tornando uma referência no horror, e matéria de estudo em diversos campos. Mas uma coisa que ainda permanece nublada em meio a toda essa "mitologia", é a cosmogenia de seu fundo cósmico, isto é a origem da existência. Se todo efeito tem uma causa, e toda causa tem uma origem quem ou qual é portanto a primeira causa de todas? Lovercraft nunca respondeu isso diretamente, mas sempre esteve implícito que não havia sido uma divindade da forma que conhecemos ou estamos acostumados: Santo, sagrado, divino e à nossa forma e semelhança. Pelo contrário, Lovercraft era ateu e não surpreende que tenha deixado de lado a concepção de uma divindade com tais atributos em suas histórias.

É evidente que Lovecraft foi bastante influênciado por diversos elementos artísticos, científicos e mitológicos para compor sua mitologia fantástica, dentre eles podemos citar a mitologia grega e romana que ele cita em sua auto-biografia, a astronomia e outros artistas como Edgar Allan Poe. Porém em algum momento de sua vida Howard, que nunca foi adepto e sempre discordou das doutrinas religiosas, topou com a teosofia e seus conceitos muito instigantes, e tal como ele relata em cartas considerou tais conceitos interessantes o bastantes para tomar seu tempo e atenção numa imersão mais profunda; em muitas de suas obras ele deixa transparecer propositalmente referências ou menções à teosofia, ora de forma clara, ora subentendida. Em "o chamado de cthulhu"(1926) ele cita e demonstra conhecer o "Ciclo cósmico" doutrinado pelos teósofos, reforçando ainda mais o que será abordado aqui, a possibilidade de sua cosmogenia ser algo muito similiar a teosófica, porém sem em nenhum momento deixar de ter sua originalidade.

"Os teosofistas fizeram conjecturas sobre a apavorante imensidão do ciclo cósmico, do qual nosso mundo e a raça humana constituem meros incidentes transitórios. Eles aludiram a estranhas sobrevivências em termos que congelariam o nosso sangue se não fossem mascarados por ameno otimismo."

Mas afinal o que é esse ciclo cósmico do qual Lovercraft fala, e quais foram estas alusões que necessitaram ser mascaradas para nossa própria auto-preservação?

De acordo com Del Debbio ele se divide em 3 partes: Pressuposto, separação e re-união;

Pressuposto - O Um é, foi e sempre será o ser, a substância, a inteligência, a consciência, que permeia, penetra e envolve tudo o que existiu, existe e virá a existir.

Separação - Se do Um veio tudo, então tudo partiu de sua própria “substância”. Essa substância, para que fosse diferenciada, dividiu-se em infinitas partes, de formas diversas e proporções diversas, em n dimensões e em n vibrações ou frequências, semeando o Cosmos com sua diversidade.
Cada semente/partícula/”coisa”, apesar de diferenciada do Um, continuava sendo uma diminuta parte do Um, contendo a sua essência

Re-união - Quando essa divisão e essa disseminação alcançou seu ápice, o que aconteceu? Toda ação gera uma reação, de mesmo módulo e direção, porém, em sentidos opostos. E essa Lei, se é Natural, haveria de funcionar desde o primeiro momento da Natureza. Então, quando a divisão alcançou seu ápice, houve um breve momento de pausa. 

Após essa pausa, toda a substância diferenciada passaria, naturalmente, a se reagrupar, a se juntar, a se unir novamente. As partículas seriam reunidas, ao longo das Eras, de acordo com inúmeros critérios. Por polaridade. Por afinidade. Por semelhanças. Essas partículas iriam se reunindo e se reorganizando. E, da organização, surgiriam as mais diversas formas, nos mais diversos tamanhos. Do microscópico ao macroscópico. Tudo obedeceria (e obedece) a um padrão, tendo uma parte visível e outra, invisível.

E assim, quando tudo o que foi dividido se reuniu, a Substância Única estaria formada novamente. A partir desse ponto, qual seria o próximo passo? O que acontece quando um pêndulo atinge o seu ponto mais alto? Ele começa o caminho de volta. Novamente. Ad Infinitum

Este é então, resumidamente, o ciclo cósmico teosófico. O otimismo mencionado por Howard se justifica, pois tal ciclo faz entender que nós, da raça humana, também somos parte desse evento maior que engloba todo organismo vivo. Quando na verdade é dito em Fungos de Yuggoth que em algum momento ou ponto da ilusão que chamamos tempo, o Caos idiota "Aniquilou o que por acaso criou, e o pó da terra pra longe assoprou". Sequer fomos planejados na manifestação, sequer temos algum propósito, meros acidentes, é a harmonia dos Mythos, somos irrelevantes, nem mesmo servimos de platéia pois somos limitados e incapazes de entender os mistérios e seres que permeiam o kosmos; Nas palavras de Carl Sagan "A terra é um palco muito pequeno, numa imensa arena cósmica".

Enfim, a relevância desse ciclo cósmico no artigo em questão, é que ele é a base simplificada do modelo cosmogênico metafísico teosófico; o meio mais acessível de enterdermos os conceitos que vem a seguir.


Na cosmogonia teosófica, no princípio havia apenas PARABRHAMÃ, isto é, apenas a substância primordial em estado imanifestado. De substância primordial entende-se "o absoluto",o todo, o eterno, a unidade de tudo e de todos os seres;
É assim como o nome sugere, algo primordial, que não tem princípio nem tem fim, não tem passado, presente nem futuro, porque transcede o tempo, não é sustentado por nada porque se sustenta a si mesmo, não tem uma causa porque ela é a sua própria causa - A causa per si.

Essa Substância é a plenitude abarcante de tudo. Os Sistemas Solares e toda a matéria que os constitui nada mais são do que a condensação ou materialização da Substância Primordial que está na origem de todas as manifestações, sejam elas de carácter físico, emocional, mental ou espiritual. Contudo, neste estado ela não é um Ser, muito pelo contrário, é precisamente o não-Ser, razão suficiente para criticar-se as diversas concepções religiosas de um Deus pessoal, antropomórfico, as quais tentaram fazer do seu Criador a sua própria criação.

Por vontade própria, ele se manifestou e sua energia operativa entrou em ação começando o ciclo de expansão; e a esse estado manifestado da substância primordial dá-se o nome de BRAHMÃ: "o que já se polarizou", "o que existe no mundo das formas". Antes de partimos para as considerações a respeito do manifestado, temos que deixar de lado por enquanto os princípios centrais cosmogônicos da teosofia; mas antes disso é necessário dizer aqui que à essa Substância Primordial indiferenciada, ou seja, imanifestada, se diz estar em estado de Caos ou “Informe”. Não é muito dificil agora perceber onde estou querendo chegar.

Pelo lado dos"Mythos de Cthulhu" temos Azathoth, o soberano do universo, que da forma que vejo e estou aqui tentando retratar, é equivalente à substância primordial em conceito, mantendo seu próprio toque de originalidade no pouco desenvolvimento que tem. Ele carrega a alcunha de Caos primordial, mas afinal, qual o sinificado de caos? Como alguém muito inteligente disso certa vez, a verdade é que os conceitos de nada, de vazio e de caos escondem-se sobre brumas filosóficas, mitológicas e doutrinárias que dificultam seu conhecimento ideal. Tudo se torna somente aparente, sem dar a exata noção dos seus reais significados
 
Geralmente quando se fala em Caos, a primeira coisa que vem na mente é desordem, confusão e trevas; Mas além disso ele possui um significado mais profundo e que remontam ao tempo das primeiras histórias da mitologia grega: A POSSIBILIDADE DE TUDO, pois tudo existia (Matéria, energia, forma, dimensões), necessitando apenas de uma ordem para que os elementos universais passassem a ter existência própria.
    Segundo a filosofia, o caos era o vazio existente antes da criação do universo; um vazio obscuro e ilimitado que antecede e teria propiciado a geração do mundo; eram as trevas primitivas. É, como se vê, uma concepção diferente da mitológica, que nega a existência do vazio e das trevas e tem por base a preexistência de elementos que estavam desordenados. O Caos teosófico reflete o mitológico, assim como o Lovercraftiano tambem o faz.

Não é de meu interesse explicar exatamente como, ou quando essa manifestação aconteceu, ou em qual ciclo cósmico a narrativa estaria; mas apenas supôr a sua origem e estabelecer um modelo cosmogônico coerente nos Mythos partindo da ideia que, se "Do nada, nada se cria" então deve haver alguma obra, modelo ou teoria cosmogenica da qual ele tenha tirado elementos do kosmos, mesmo que mínimos, para servir de base para o seu próprio.

A substância primordial, PARABRÃHMA, tem nos campo da cabala uma outra denominação: "Ayn Suph" (sem limites, infinito), e apesar de algumas divergências do conceito teosófico - o qual apresentei incialmente a fim de enquadrar Azathoth - há algumas observações interessantes a respeito de Ayn Suph que valem a pena serem mencionadas:

"Antes de dar qualquer forma ao mundo, antes de produzir qualquer forma, Ele estava sozinho, sem forma e sem semelhança com qualquer outra coisa. Quem então pode compreender como Ele estava antes da Criação? Por essa razão, é proibido emprestar-lhe qualquer forma ou semelhança, ou até mesmo chamá-lo pelo seu nome sagrado, ou indicá-lo por uma única letra ou um único ponto."

É uma observação interessante na teoria que reflete Azzatoth como PARABRHÃMA, pois não é verdade que ele é sempre descrito como uma massa de caos amorfa? Isto é, sem forma definida. Também não é verdade que está escrito que nenhum ser se atreve a pronunciar o nome do caos nuclear temendo os horrores que isso possa causar?

"Esta última entidade malígna e amorfa do Caos absoluto, que blasfema no centro de toda a infinidade é o ilimitado Azathoth, o demônio sultão, cujo nome nenhum lábio se atreve a falar em voz alta"

Ainda nos terrenos cabalísticos, Yudá Ḥayyaṭ, em seu comentário "Minḥat Yehudah" no "Ma'areket Elahut", dá a seguinte explicação do termo "Ayn Sofh":

"Qualquer nome de Deus que se encontra na Bíblia não pode ser aplicado à Divindade antes a Sua auto-manifestação na Criação, porque as letras desses nomes foram produzidas somente após a emanação ... Além disso, um nome implica uma limitação em seu portador; e isso é impossível em conexão com o "En Sof".

E é verdade que assim como Ayn Suph, o caos nuclear não pode e não precisa ter um nome, inclusive Azzatoth sequer é seu nome de fato e sim uma denominação que por compaixão fora dada pelo Árabe Abhdul no Necronomicon:

"A lenda de Yig, Pai das Serpentes, deixou de ser mera metáfora, e tive um sobressalto de asco quando ele me falou do monstruoso caos nuclear que reina além do espaço angulado que o Necronomicon havia compassivamente ocultado sob o nome de Azathoth."

Vale ressaltar que a primeira vez na qual o nome Azathoth apareceu foi em uma nota que Lovercaft escreveu para si mesmo que dizia: Azathoth - nome hediondo", isso somado a passagem que diz que tal nome fora dado por compassividade, implicam que nem um denominação hedionda chega perto de descrever tamanho horror.

O Ayn Suph está relacionado à substância química Azoth, objeto de estudo dos alquimistas e considerados por alguns nesse meio, como a própria pedra filosofal. Considerado o solvente universal, a cura universal e o elixir da vida, o Azoth é dito incorporar os primeiros princípios de todas as outras substâncias. Como a Força Vital Universal, acredita-se que o Azoth não seja apenas a energia animadora (spiritus animatus) do corpo, mas também da mente. Embora seu conceito seja essencialmente distinto do Ayn Suph, a semelhança de seu nome com "Azathoth" é no mínimo curiosa e digna de menção.

Esse modelo cosmogônico teosófico também pode ser visto em uma forma mais simplicada que é o panteísmo, a crença de que absolutamente tudo e todos compõem um Deus abrangente, e imanente.
 A palavra é derivada do grego pan (que significa "tudo") e theos (que significa "deus"). Embora existam divergências dentro do panteísmo, as ideias centrais dizem que Deus é encontrado em todo o cosmos como uma unidade abrangente, portanto é aceitável no panteísmo o politeísmo (adoração e crença em vários deuses), pois as divindades são tidas como aspectos diferentes do absoluto.

Segundo esta filosofia Deus faz parte do mundo como um ser que lhe é imanente e do qual é inseparável. Encerro então com essa bela descrição de Sérgio Sodré a respeito deste sistema filosófico:

"O Panteísmo Imanentista é uma filosofia interessante e sedutora na medida em que defende que Deus gerou o Universo a partir da sua própria substância e, deste modo, não o criou a partir do Nada. O Universo é gerado e não criado. Assim, parece ficar resolvido e ultrapassado o problema do Nada.
É que do Nada não pode surgir alguma coisa a não ser que o Nada seja tratado como sendo alguma coisa. A criação a partir do Nada, quer seja por Deus, quer seja pelo Acaso dos ateus materialistas, levanta uma contradição lógica, pois o Nada para “ser” Nada não pode ser “alguma coisa” e do verdadeiro Nada, nada sai ou se produz ou se cria. O Nada é a ausência e a impossibilidade da Existência. Deste modo, é filosoficamente sedutor ver o Mundo como derivado da substância do próprio Deus, conquanto ele não seja Deus."

Comentários

  1. Não sei como cheguei aqui, mas ainda bem que cheguei, estou fascinado pela Kabbalah e o judaismo que explica a antecessão da criação e suas camadas e esse texto me inspirou a pensar muito. Muito bom mesmo!

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