As influências herméticas e cabalísticas nos Mythos de Lovecraft


Depois de ter dissertado sobre as influências teosóficas nos Mythos De Lovecraft, dessa vez eu pretendo abordar uma prática que é um dos principais responsável pela criação da própria teosofia, o hermetismo, e sua quase inegável importância na "Mitologia" Lovecraftiana.

O Hermetismo é o estudo e prática da filosofia oculta e da magia, de um tipo associado a escritos atribuídos ao deus Hermes Trismegistus, "Hermes Três-Vezes-Grande", uma deidade sincrética que combina aspectos do deus grego Hermes e do deus egípcio Thoth. Estas crenças tiveram influência na sabedoria oculta europeia, em especial desde a Renascença, quando foram reavivadas por figuras como Giordano Bruno e Marsilio Ficino. A magia hermética passou por um renascimento no século XIX na Europa Ocidental, onde foi praticada por nomes como os envolvidos na Ordem Hermética do Amanhecer Dourado e Eliphas Lévi. O hermetismo também está associado à alquimia e a astrologia.

Os escritos Herméticos são uma coleção de 18 obras Gregas, e as principais são Corpus Hermeticum e a Tábua de Esmeralda, as quais são tradicionalmente atribuídas a Hermes Trismegistus. Estes escritos contêm os aspectos teórico e filosófico do Hermetismo em seu aspecto teosófico.

Para começarmos a compreender a importância hermética para os Mythos vamos primeiramente falar dos seus conteúdos que influenciaram indiretamente alguns aspectos deste. Lovecraft trabalhou com entidades arquétipicas, idéias ou seres primordiais que são responsáveis por todas as "coisas" existentes na realidade, ele tomou este conceito emprestado da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, que chamou de arquétipos as “imagens primordiais” originadas de uma repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo.

Acontece que Jung não inventou este termo, ele também tomou emprestado de outra obra, que é o "Corpus Hermeticum", livro escrito em primeira pessoa por Thoth:

"Esta proposição é irrefutável, oh! Trismegistos. O lugar no qual então se move o universo, que dizemos que ele é? - Um incorpóreo, Asclépios. - Mas o que é incorpóreo? - Um intelecto, que contém inteiramente a si próprio, livre de todo corpo, infalível, impassível, 
intangível, imutável em sua própria estabilidade, contendo todos os seres e os conservando no ser, do qual são como os raios, o bem, a verdade, o arquétipo do espírito, o arquétipo da alma. - Mas Deus, então, o que é? - É aquele que não é nenhuma dessas coisas, mas que por outro lado é para essas coisas a causa de sua existência, para tudo e para cada um dos seres."

Outro conceito, desta vez cabalístico, que pode ter influenciado a "mitologia" de Howard é a "Lei de Maya".
A palavra sânscrita “Maya” significa “Ilusão”, e se aplica tanto ao Universo como à Natureza observável em nosso planeta. Ela postula que literalmente o "mundo" (material) é uma ilusão e que somente aquilo que é eterno e imutável merece o nome de "real".

Esta idéia foi inevitavelmente associada por mim a uma passagem de "Through the gates of the silver Key" na qual o protagonista, Randolph Carter, aprende por meio do UM ART TAWIL que a realidade (Tridimensional e dimensionada) é uma mentira.

"O Homem da Verdade está além do bem e do mal", entoou a voz que não era uma voz. O Homem da Verdade cavalgou para o Todo-em-Um. O Homem da Verdade aprendeu que a Ilusão é a Única Realidade, e que a Substância é o Grande Impostor ”.

Se Lovecraft realmente teve a idéia de implementar esta premissa, de um Cosmos ilusório, por influência da Khabbalah nunca saberemos, mas fica valendo como curiosidade.

No entanto, nem só de especulações vive o homem e portanto vamos expandir a área de influência para referências diretas do hermetismo inseridas dentro do coração destilado dos Mythos. Ainda em "Through the gates of the silver key" Lovecraft menciona o Livro de Toth descrito no Necronomicon do poeta Árabe Abdul Al Hazred.

"E enquanto há aqueles", escreveu o árabe louco, "que ousaram procurar vislumbres além do Véu, e aceitá-lo como guia, teriam sido mais prudentes se tivessem evitado qualquer relacionamento com ELE; pois está escrito em o Livro de Thoth, quão terrível é o preço de um único vislumbre, e os que passam jamais retornam, pois nas vastidões infinitas que transcendem o nosso mundo há formas de escuridão que agarram e capturam."



O Livro de Thoth é um texto mágico que precedeu a civilização egípcia, cujas páginas continham o segredo da criação do mundo e o destino da humanidade. De acordo com os pesquisadores, estudiosos e especialistas nos mistérios do Tarot, as referências contidas no Livro de Thoth representam, através de suas divindades, os princípios e os símbolos universais traduzidos em números, que, por sua vez, se traduzem em arquétipos.

Qualquer pessoa com algum conhecimento de Tarot sabe que o grande poder e o conhecimento contido nas cartas se baseiam na força dos arquétipos, que são padrões do inconsciente coletivo de toda a humanidade e representam todas as emoções humanas. O Livro de Thoth posteriormente viria a ser a base principal para criação da Cabala e da religião judaica.

O nome Thoth, no Mythos, é semelhante ao de Azathoth, uma inspiração pro último talvez. E o mais interessante é que as semelhanças não ficam apenas no nome como veremos mais a frente. Conclui-se então, com a unificação destas duas fontes de conhecimento, que a fonte da qual o árabe louco retirou o nome "Azathoth" foi provavelmente o "livro de Thoth", ainda que permaneça oculta a origem e significado do prefixo "Aza".

Um dos principais motivos que me levou a criar este artigo foi a semelhança de uma passagem do Livro T com uma "descrição" feita de Azathoth em "Os sonhos na casa assombrada".

O Livro T é um conjunto de textos sobre tarô publicado por uma facção da Ordem hermética da aurora dourada , que remete mais ou menos aos anos 1890.
T é uma referência a Thoth, divindade egípcia à qual se atribui simbolicamente a criação dos hieróglifos. A idéia central do livro é de que existe uma precisa correspondência entre a Cabala Hermética (compreendendo a Árvore da Vida, que possui 22 caminhos entre suas 10 sephiroth e as 22 letras do alfabeto hebraico) e o tarô, sendo ela uma chave não apenas para o tarô, bem como para todo o esoterismo ocidental. Cabe esclarecer aqui que a Cabala Hermética é uma versão ocidentalizada da Cabala Judaica, surgida na Renascença por iniciativa de filósofos que tentaram incorporar ao pensamento cristão o misticismo judaico.

O Livro T inicia-se com uma passagem do Apocalipse de S. João, capítulo cinco, em que é mencionado um livro selado com sete selos (o Segredo do Universo):

Conduzindo as atividades da Sabedoria Secreta.

“Escreve num Livro o que viste e envia-o aos Sete Moradores de Assiah.”

“E na mão direita Dele, que estava sentado num Trono, vi um livro selado com Sete Selos.” “E ouvi um vigoroso Anjo proclamar em voz alta: ‘Quem é digno de abrir os Livros e de romper seus selos?’”

A passagem da bíblia relata o Trono de Deus que João vê no capítulo 4. E que eu também associei à uma frase de um conto de Lovecraft que descreve um sonho de um personagem por meio do qual ele teria acesso a outros planos existenciais:

"Ele devia encontrar o Homem Negro e ir com eles todos até o trono de Azathoth, no centro do caos definitivo. Era o que ela dizia. Ele devia assinar o livro de Azathoth com seu próprio sangue e adotar um novo nome secreto agora que suas investigações independentes o haviam levado tão longe. O que o impedia de ir com ela, Brown Jenkin e o outro até o trono do Caos onde as finas flautas sopravam descuidadamente era o fato de ter visto o nome "Azathoth" no Necronomicon e saber que se referia a um demônio primitivo, pavoroso demais para ser descrito."

Talvez eu possa estar enganado, mas me parece quase explícito que Lovecraft teve a intenção de fazer um paralelo entre as duas passagens. Como se o trono de Deus equivalesse ao trono de Azathoth, temos inclusive o livro inserido nesse conto, um elemento desnecessário e deslocado da narrativa, como se tivesse sido inserido apenas para evidenciar esta analogia, o livro T, inspirado no Livro de Toth, que inspira o Livro de Azathoth. Como se ele estivesse determinando de uma vez por todas que não há um Deus pessoal antropomórfico em sua cosmogonia, um reflexo de sua ideologia atéia, que na verdade o Deus é o próprio Caos, informe e indiferente, alheio à nossas preces e a nossa lamentável existência, insignificante.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Azathoth

Através dos portões da chave de prata

O Caos e os Arquétipos: Os conceitos que fundamentam o universo de Lovecraft