O cosmicismo de Lovecraft


Aos que empregaram seu tempo a refletir sobre a existência e modo de sobrevivência de nossa raça, é provável que se tenha elucidado sobre como nosso ser no mundo é um tanto peculiar. A forma como existimos é geralmente dependente da premissa de que tanto o nosso ser como o mundo em que ele se desdobra são significativamente interpretáveis, conceitualmente humanos e linguisticamente significantes, ou, em termos simples, simplesmente precisamos que as coisas façam sentido para nós.

Basicamente isso pode ser definido pelo conceito de Nomos, de Peter Berger, um mundo construído por humanos, que a humanidade é existencialmente necessária para criar. O grande problema é que os assim chamado "Nomos" só assumem como real aquilo que eles consideram - significativo, ordenado, reconhecível, antropocêntrico - suprimindo assim qualquer coisa que exista fora dele, isso é evidenciado pela  humanidade que concebe outras entidades, assim como outros modos de realidade em uma priori semelhante ao humano.

Sendo um daqueles poucos que suspeitam que a noção contrária é verdadeira, ou seja, que não há significado e ordem inerentes dentro do Universo, Lovecraft construiu suas histórias em torno de casos em que os Nomos são forçados a entrar em contato com elementos extra-nômicos que desconstrói a autoproclamada noção de sermos a fonte e a origem da realidade como tal.

Talvez a primeira obra na qual o cosmicismo pessimista de Lovercraft de oposição ao Nomos foi apresentado tenha sido no poema escrito em 1916 "The Poe-ets Nightmare". Nele o protagonista se encontra perdido no espaço e por intermédio de alguma existência superior a dele aprende quão limitada e ignorante é a humanidade, e sua ciência; E quantas infinidades de mundos e formas de vida elas desconhecem.

"[...] Me fez saber
que todos os universos a meu ver 
Formavam apenas um átomo no infinito
Que passava através dos reinos preenchido pelo éter 
De calor e luz, estendendo-se a campos distantes
Onde florescem mundos invisíveis e vagos
Preenchidos com estranha sabedoria e vida misteriosas [...]" 

O protagonista experimenta um levantar de pálpebras e a visão da imensa ignorância e insignificância, sua e de toda a humanidade. No entanto, este cosmicismo está mais enraizado nesse pano de fundo cósmico do que meramente um desconhecimento de elementos externos, pois Lovercraft não concebeu um deus teológico e antropomórfico em seu universo, e sim um conceito nascido na Grécia Antiga, que é o Caos primordial.

Para os gregos, tanto no pensamento mítico quanto filosófico, é notório a anterioridade do Caos em relação ao cosmos. Cornelius Castoriádis, filósofo grego, pondera sobre esta idéia: "Na teogonia de Hesíodo, lemos que no princípio havia apenas o Caos. Caos, em grego, no sentido próprio e primordial, significa vazio, nada. É do vazio mais total que o mundo emerge. Mas, já em Hesíodo, também o universo é caos, no sentido de que não é perfeitamente ordenado, de que não se submete a leis plenas de sentido. No princípio, reinava a desordem mais total, depois, foi criada a ordem, o cosmos. Contudo, nas ‘raízes’ do universo, para
além da paisagem familiar, o caos continua a reinar soberano."

No entanto, Castoriádis tem em mente o Caos ontológico, pois para ele o ser é o caos. O cosmos emerge da ordem, que por sua vez emerge do Caos, isto demonstra as relações criadas pelo homem ao imprimir sentido em um mundo sem sentido. Porque o ser é o caos, e não há sentido algum intrínseco a ele, embora todo sentido seja possível, o mundo emerge como mundo de significações. O ser humano surge então como criador de seu próprio mundo pela criação de instituições e significações imaginárias que, no entanto, não determinam o mundo de uma vez por todas.

O caos é essencialmente impensável, pois não se trata de uma "coisa" (determinada). Emanuel Carneiro Leão em seu artigo "O sentido grego do Káos" elucida esta visão "Ninguém nunca consegue pensar sobre o caos, por mais que se deseje e se empenhe. Quem o pretendesse nem mesmo saberia o que estaria fazendo, que não estaria pensando sobre o caos, mas sobre uma coisa. Pois só é possível pensar sobre o que tem sentido, nunca sobre o princípio de ordem e articulação da possibilidade de haver sentido"

Como já dito antes não há sentido intrínseco no caos, ele só se dá na impossibilidade, isto inclui a impossibilidade de de pensar, falar ou agir sobre ele. Sendo a fonte do que é chamado sentido, ele próprio não pode ter um, pois antes dele sequer havia tal coisa ou coisa alguma.

Portanto, retornando aos Mythos, a escolha de Lovecraft do Caos como a entidade primordial e soberana em seu universo não foi mero acaso ou aleatoriedade, pois um universo que nasce essencialmente da ausência de sentido ou propósito é a chave de seu cosmicismo, é dele que vai surgir o horror e medo dos personagens. A raça de egocentristas arrancada de sua zona de conforto para se depararem com sua real importância na realidade final: Absolutamente nenhuma. Não há um paraíso ou reencarnação, viemos do caos e voltaremos para ele, nossa sociedade e conceitos são uma mentira criadas pela nossa covardia, embora o desejo de sobreviver seja a mais honorável covardia, pois não sobrevivemos sem estas instituições e significados, graças ao bom deus de mentirinha, não sobrevivemos, pois qual é o homem que não corteje a morte ao se deparar com tamanho horror inexpressível? Qual a curiosidade tamanha que não pôs aliança no arrependimento? A luz é perigosa, voltemos as cavernas.

Comentários

  1. O cosmicismo é algo muito interessante . Fico com duas duvida, teria como fazer uma aventura com esse gênero? e seria valido na realidade?(claro tirando a parte das entidades, mas julgando que para nosso universo somos um nada, eu meu ver seria valido até para mundo real de certa forma)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Uma aventura em que sentido? Se você for parar pra ver "through the gates of the silver key" relata a aventura de Randolph carter até se deparar com a verdade absoluta, embora o foco principal seja no horror que essa ideia traz.

      Quanto a segunda, é completamente válida no nosso mundo. Inclusive Castoriadis assume esta visão e tem pontos muitos fortes de que o ser é o caos, e portanto o insignificavel, significados só existem nas instituições criadas pela humanidade e não como verdade.

      Excluir
    2. Exemplo: Bora pensa em uma aventuro estilo Shounen. Creio eu que não daria muito certo. Pois nesse estilo de aventura o protagonista tem que supera limites e inimigos, mas no Cosmicismo se trata de seres insuperáveis e completamente transcendente e sem limites, certo? Se um dos inimigos fosse Nyarlathotep? de duas uma, ou "cosmicismo" seria quebrado e o protagonista derrotaria Nyar ou protagonista seria derrotado ou algo do tipo. Ao seu ver teria como conciliar ambas características?
      E interessante a Castoriadis. Em uma visão mais cientifica o cosmicismo seria valido?

      Excluir
    3. Bem, a idéia do cosmicismo é a ausência de um sentido real e verdadeiro pro kosmos e pra humanidade, o que não impede que os humanos criem seus próprios sentidos e razões (que é o que acontece). Não acho que seja aplicável num shounen, visto que o foco do shounen é a construção e aventuras do próprio protagonista. Não há como se cogitar sequer vencer um outer god ao menos que ele queira que você transceda a sua realidade (que na verdade é a ilusão), então superar um oponente assim seria realmente impossível, mas ainda que houvesse plot para isso, não mudaria o pano de fundo de que o kosmos é sem sentido, pois ele nasce do Caos que é a própria insignificação.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Azathoth

Através dos portões da chave de prata

O Caos e os Arquétipos: Os conceitos que fundamentam o universo de Lovecraft