A Busca Onírica Pela Desconhecida Kadath


Por H.P Lovecraft

Três vezes Randolph Carter sonhou com a cidade maravilhosa, e três vezes despertou no momento em que se detinha parado no alto terraço sobre ela. Inteiramente dourada e bela, resplandecia no pôr-do-sol, com suas paredes, templos, colunatas e pontes arqueadas de mármores venosas, vales prateados de prismáticos ramos de flores em amplas praças e jardins perfumados, e largas ruas marchando entre delicadas árvores e vasos orneados de flores e estátuas de marfim em fileiras cintilantes; enquanto em íngremes encostas ao norte ascendiam níveis de telhados vermelhos e antigos picos entre os quais haviam pequenas vielas invadidas pela grama. Era a febre dos deuses, uma fanfarra de trombetas celestes e um choque de címbalos imortais. Mistérios pairavam sobre ela como nuvens sobre uma fabulosa montanha não-explorada; e quando Carter, sem folêgos, se encontrava por sobre aquele parapeito balaustrado, foi acometido pela angústia e nostalgia de memórias quase esquecidas, pela dor das coisas perdidas e pela urgente necessidade de encontrar novamente aquele que algum dia fora transcedental e pavoroso lugar.

Sabia que, para ele, aquele lugar deveria ter tido alguma vez um significado supremo, mas não podia se lembrar em que época nem em qual encarnação o havia visitado. Se havia sido em sonhos, ou em vigília, não podia dizer. Ele vagamente vislumbrara uma reminiscência fugaz de uma juventude distante e esquecida, na qual a maravilha e o prazer enchiam o mistério dos dias, e o crepúsculo e o amanhecer se sucediam sob um ritmo igualmente impaciente e profético de alaúdes e canções, abrindo as portas ardentes de novas e surpreendentes maravilhas. Mas cada noite em que se encontrava naquele elevado terraço de mármore, ornado de estranhos vasos e balaústres esculpidos, e observava, sob um pacífico sol, a beleza sobrenatural da cidade, sentia o cativeiro em que o tinham os deuses tirânicos do sonho; Ele não podia deixar aquele lugar tão alto para descer a infinita escada de mármore para aquelas ruas impregnadas de feitiços antigos que o fascinavam ...

Quando pela terceira vez ele despertou daqueles degraus em que não descendera e daquelas silenciosas estradas ao entardecer que não percorrera, orou fervorosamente por um longo tempo para os deuses ocultos dos sonhos, que habitam caprichosamente acima das nuvens da desconhecida Kadath, na fria imensidão onde nenhum homem caminhou. Mas os deuses não responderam ou demonstraram abrandamento, nem o favoreceram com algum sinal quando ele orou para eles em sonho, nem quando os ofereceu sacrifícios através dos sacerdotes barbudos de nasht e kaman-thah, cuja caverna-templo, na qual se avista uma coluna de fogo, encontra-se não muito longe dos portões do mundo desperto. Parecia, no entanto, que suas orações haviam sido ouvidas com hostilidade, pois exatamente após a primeira delas, ele cessou completamente de contemplar a cidade maravilhosa; como se seus três vislumbres de longe tivessem sido permitidos apenas por acidentes ou descuidos, de encontro a algum plano oculto ou desejo dos deuses. Então, enfermo de saudades das esplendorosas avenidas ao pôr do sol e enigmáticas vielas nas colinas, ocultas entre aqueles telhados antigos que nem em sonhos nem desperto podia apartar de seu espírito, Carter decidiu chegar até onde nenhum outro ser humano havia ousado antes, e cruzar os tenebrosos desertos gelados onde a desconhecida kadath, coberta de nuvens e coroada de estrelas desconhecidas, guarda o noturno e secreto castelo de ônix, onde habitam os grandes deuses.

À luz do sono ele desceu os setenta degraus para a caverna da chama, e falou de seu plano para os sacerdotes barbudos de nasht e Kaman-tha. E os sacerdotes, cobertos com suas tiaras, balançaram negativamente a cabeça prevendo que seria a morte de sua alma. Eles lhe disseram que os Grandes Deuses [Great ones] já manifestaram seus desejos e que não lhes agradaria ser entediados por súplicas insistentes. O lembraram também, que não só nunca havia homem algum chegado a Kadath, mas que também ninguém sequer suspeitava em onde ela se situava, seja em países dos sonhos que rodeiam nosso mundo ou naquelas regiões em torno de alguma insuspeita estrela ao redor de Fomalhaut ou Aldebaran. Se estivesse na região dos nossos sonhos, não seria impossível chegar a ela. Mas desde o começo dos tempos, apenas três seres totalmente humanos atravessaram os impiedosos e sombrios abismos do sonho; E dos três, dois voltaram totalmente loucos. Em tais viagens haviam incalculáveis perigos imprevisíveis, assim como uma terrível ameaça final: O ser que uiva abominavelmente além dos limites do cosmos ordenado, ali onde nenhum sonho pode chegar. Esta última entidade malígna e amorfa do Caos absoluto, que blasfema no centro de toda a infinidade é o ilimitado Azathoth, o demônio sultão, cujo nome nenhum lábio se atreve a falar em voz alta, e que corrói faminto em escuras e inconcebiveis câmaras além do tempo, entre o enlouquecedor bater de tambores, e fina e monótona lamúria de flautas blasfemas ; ao detestável martelar e assobiar ao som dos quais dançam lenta, desajeitadamente, e absurdamente os gigantescos deuses finais [deuses supremos], os cegos, mudos, tenebrosos e estúpidos, "Outros deuses" cuja alma e emissário é Nyarlathotep, o caos rastejante

De todas estas coisas advertiram a Carter os sarcedotes Nasht e Kaman- Thah na caverna de fogo, mas ele seguiu decidido a partir em busca da desconhecida Kadath, que se encontra perdida na fria imensidão, onde quer que ela esteja, para desfrutar a visão, as lembranças e o amparo da maravilhosa cidade do sol ponente. Ele sabia que a sua viagem seria estranha e longa, e que os Grandes [Great ones] oporiam-se a ela, mas sendo antigo na terra dos sonhos, ele contava com muitos memórias utéis e meios para ajudá- lo. Então, pedindo uma benção formal dos sacerdotes e pensando perspicazmente em seu curso, ele desceu corajosamente os setecentos degraus para os portões do sono profundo e partiu através da floresta encantada.

Nas cavidades deste bosque retorcido - cujos prodigiosos carvalhos tateiam e entralaçam seus ramos para o ar, e cujas sombras reluzem com apagada fosforecência de estranhos fungos - habitam os furtivos e silenciosos Zoogs. Estes seres conhecem uma infinidade de segredos obscuros da região dos sonhos e alguns do mundo desperto, já que a floresta faz fronteira com o mundo dos homens em dois lugares, embora seria desastroso dizer em quais. Alguns rumores sem explicação, certos acidentes e desaparecimentos ocorrem entre os homens ali onde os zoogs têm acesso, por isto é uma grande sorte que eles não possam viajar para longe demais da região dos sonhos. No entanto, ao longo da fronteira mais próxima ao mundo dos sonhos, eles passam livremente e deslocam-se, negros, minúsculos, invisíveis, para contar divertidas histórias de seu retorno e entreter com elas as longas horas que passam ao redor de suas lareiras na floresta que amam. A maioria deles vivem em tocas, mas alguns habitam os troncos de grandes árvores; e apesar de se alimentarem principalmente de fungos, é dito que também lhes atrai a carne, tanto física como espiritual, e certamente, muitos sonhadores entraram na floresta e não retornaram. Carter, no entanto, não tinha medo, pois era um sonhador veterano que conhecia a estranha linguagem destes seres e havia tratado várias vezes com eles; encontrara através da ajuda deles a esplêndida cidade de Celephais em Ooth- Nargai além dos montes Tanarios, onde reina por metade do ano, o grande rei Kuranes, um homem que ele havia conhecido por outro nome em vigília. Kuranes foi o único homem que havia alcançado as profundezas estelares e retornado em são juízo.

Ao atravessar os estreitos corredores fosforescentes entre os gigantescos troncos da floresta, Carter emitia certos sons estranhos, à maneira dos zoogs e calava-se de vez em quando á espera de uma resposta. Ele lembrou que havia uma aldeia de zoogs no meio da floresta, em uma área onde abundavam grandes rochas musgosas e onde, dizia-se, havia vivido anteriormente seres ainda mais terríveis, afortunadamente esquecidos, depois de tanto tempo. Então ele se dirigiu para aquele lugar. Ele reconheceu o caminho dos fungos grotescos; que cada vez pareciam maiores e melhor alimentados, à medida que se aproximava do terrível círculo de pedras o qual em cujo centro haviam dançado e celebrado sacrifícios os inomináveis seres antigos. Finalmente, o enorme brilho desses fungos inchados revelou uma sinistra imensidade cinza esverdeada que ascendia do topo da floresta até fora da vista. Estava muito perto do anel de pedras, e Carter sabia que a aldeia dos zoogs não deveria estar muito longe. Renovando seus chiados vibrantes, ele esperou pacientemente; e finalmente, seus esforços foram recompensados ​​pela percepção de que uma multidão de olhos o observavam. Eles eram os zoogs, cujos olhos espectrais se destacam na escuridão muito antes de suas silhuetas obscuras, frágeis e evasivas se distinguirem.

Eles pularam de suas tocas e árvores ocas, e eram tão numerosos que invadiram todo o espaço iluminado. O mais feroz o tocou desagradavelmente, e um deles veio lhe dar uma mordida repulsiva em uma orelha; Mas esses seres desorganizados e desrespeitosos logo foram contidos pelos mais velhos e sábios. O conselho dos sàbios, ao reconhecer o visitante, ofereceu-lhe uma abóbora cheia de seiva fermentada de uma certa árvore encantada que era diferente de todas as outras, e que nasceu de uma semente da lua. E depois de Carter beber cerimoniavelmente, uma estranha conversa começou. Infelizmente, os zoogs não sabiam onde estava o pico de Kadath, nem podiam dizer a ele se a imensidão fria estava em nosso país dos sonhos ou em outro. Rumores de aparições dos grandes [Great Ones] surgiam indistintamente de todos os pontos e apenas um dos zoogs pôde informá-lo que era mais frequente vê-los nos picos das altas montanhas do que nos vales, pois em tais picos executam suas danças comemorativas quando a lua brilha sobre eles e as nuvens os isolam das terras baixas.

Então um zoog que era muito velho lembrou de algo que os outros desconheciam e disse que em Ulthar, do outro lado do rio Skai, todavía existia um último exemplar dos Manuscritos Pnakóticos, copiados por homens em vigília em algum reino boreal já esquecido, e transferidos para a região dos sonhos quando os caníbais peludos chamados gnophkehs conquistaram Olathoe, a terra dos infinitos templos, e mataram a todos os heróis do país de Lomar. Os manuscritos, ele disse, dizia muito dos deuses, e além disso, em Ulthar havia homens que haviam visto os sinais dos deuses, e até mesmo um velho sacerdote que tinha escalado um grande montanha para vê-los dançar sob a luz da lua. Felizmente havia fracassado em sua tentativa, mas um companheiro seu que havia conseguido vê-los havia perecido horrivelmente.

Randolph Carter agradeceu por estas informações aos Zoogs, que emitiram amigáveis guinchos e lhe deram outra abóbora de vinho lunar para que levasse consigo, e seguiu seu caminho através da floresta fosforecente, na direção oposta, onde as tumultuosas águas de Skai se precipitam pelas encostas de Lerion, de Hatheg, de Nir e de Ulthar, e se acalmam depois na planície. Atrás dele, furtivos e escondidos, rastejavam vários Zoogs curiosos que desejavam saber o que aconteceria para contar mais tarde aos seus. Os imensos carvalhos foram tornando-se mais corpulentos e espessos a medida que se afastava da aldeia, e chamou sua atenção um lugar em que pareciam muito mais escassos, mortos ou morrendo, como se afogado entre uma abundante quantidade de fungos deformados, lixos podres e troncos de seus irmãos mortos. Aqui teve que desviar bastante, pois havia incrustada no chão uma enorme laje de pedra. E quem havia se atrevido a aproximar-se dela conta que possui um anel de ferro de um metro de diãmetro. Lembrando do círculo arcaico de rochas musgosas, e a possível razão para a qual foi construída, os Zoogs não se detiveram junto à laje do gigantesco anel. Sabiam que nem todo o esquecido está necessariamente morto e não seria agradável ver aquela laje levantar-se, lenta e deliberadamente. Carter se virou ao ouvir os assustados gritos de zoogs atemorizados. Ele sabia que o seguiam, e por isso não estava alarmado; logo se acostuma às estranhezas dessas criaturas sorrateiras. 

Ao sair do bosque se viu imerso em uma luz crepuscular cujo brilho ascendente anunciava que estava amanhecendo. Acima das planícies férteis que descendam para o Skai, e por todas as partes, se extendem as cercas, os campos arados e os telhados de palha daquele país pacífico. Ele parou determinada vez em uma fazenda para tomar um copo de água, e os cães latiram com espanto devido aos zoogs invisíveis que se arrastaram atrás dele através da grama. Em outra casa, onde as pessoas estavam atarefadas, ele perguntou se eles sabiam alguma coisa sobre os deuses e se eles dançavam freqüentemente no topo de Lerion; mas o fazendeiro e sua esposa limitaram-se a fazer o símbolo ancestral [Elder sign] e indicar sem palavras a estrada que conduzia a Nir e Ulthar.

Ao meio dia, ele estava caminhando pela rua principal em Nir, onde ele já havia estado antes. Esta cidade era o lugar mais distante que já havia visitado nessa direção. Pouco depois, ele alcançou a grande ponte de pedra que atravessa o Skai, em cuja seção central os construtores haviam selado seu trabalho com o sacrifício de um ser humano mil trezentos anos atrás. Uma vez no outro lado, a presença frequente de gatos (que eriçavam suas espinhas na passagem de zoogs) anunciava a proximidade de Ulthar; pois em Ulthar, de acordo com uma lei antiga e muito importante, ninguém pode matar sequer um único gato. Muito agradáveis eram os arredores de Ulthar, com suas casas cobertas de palha e suas fazendas de cercado limpo; e ainda mais agradável era a vila em si, com seus velhos telhados pontiagudos e suas fachadas pitorescas, com suas inúmeras chaminés e estreitas ruas íngremes, cujos antigos paralelepípedos podiam ser admirados onde os gatos deixavam espaço suficiente.  

Uma vez que os gatos notaram a presença dos zoogs e se afastaram, Carter foi diretamente para o modesto Templo dos Grandes Deuses [elder ones], onde sacerdotes e arquivos antigos foram ditos estar; e já dentro da venerável torre circular coberta de hera, coroando a mais alta colina de Ulthar, procurou o patriarca Atal, que escalara o pico proibido de Hathea-Kla no deserto de pedra e voltara vivo. 

Atal, sentado em seu trono de marfim em um santuário ornado de festões, que ocupa a parte mais alta do templo, tinha mais de trezentos anos de idade, mas ainda conservava sua lucidez [clareza de espírito] e toda a sua memória. E dela, Carter aprendeu muitas coisas a respeito dos deuses; mas acima de tudo, que eles são apenas deuses da terra, que exercem fraco poder sobre o mundo de nossos sonhos, e não têm outro senhorio, nem habitam em nenhum outro lugar. Eles podiam atender ao apelo de um homem se estivessem de bom humor, mas não se devia tentar subir até sua fortaleza de ônix, que estava no topo de Kadath, a cidade da imensidão fria. Era uma sorte que nenhum homem conhecesse a localização exata das torres de Kadath, porque qualquer expedição para elas poderia ter tido graves consequências. Barzai o Sábio, o companheiro de Atal, tinha sido arrebatado gritando de terror pelas forças do céu, apenas por ousar escalar o famoso pico de Hatheg-Kla. No que diz respeito à desconhecida Kadath, se alguém chegara a encontrá-la, seria muito pior; pois, embora às vezes os deuses da terra possam ser dominados por algum sábio mortal, eles são protegidos pelos Outros Deuses do Exterior, dos quais é mais prudente não falar.

Duas vezes, pelo menos, na história do mundo, os outros deuses deixaram sua marca impressa no granito primordial da Terra: o primeiro, em tempos pré-diluvianos, como poderia ser deduzido de certas gravuras desses Manuscritos fragmentários de Pnakotic, cujo texto é muito antigo para ser interpretado; e outro em Hatheg-Kla, quando Barzai, o Sábio, quis testemunhar a dança dos deuses da terra à luz da lua. Então - disse Atal - é melhor deixar todos os deuses em paz e limitar-se a prestar-lhes orações discretas . 

Carter, embora decepcionado com os conselhos desencorajadores de Atal e a pouca ajuda fornecida pelos Manuscritos Pnakóticos e os Sete Livros Crípticos de Hsan, não perdeu toda a esperança. Primeiro, ele perguntou ao velho sacerdote sobre aquela cidade maravilhosa do pôr-do-sol, que via de um terraço alinhado com balaústres, pensando que talvez ele pudesse encontrá-la sem a ajuda dos deuses; Mas Atal não pôde dizer nada a ele. Provavelmente, "disse Atal", esse lugar pertencia ao mundo de seus sonhos pessoais, não ao mundo onírico comum, e ele provavelmente estaria em outro planeta. Nesse caso, os deuses da terra não podiam guiá-lo, mesmo que quisessem. Mas isso também não era certo, uma vez que a interrupção de seus sonhos três vezes indicava que havia algo nele que os Grandes Deuses queriam esconder. 

Então Carter fez algo repreensível: ele ofereceu à seu amável anfitrião tantos drinques de vinho lunar que os zoogs lhe deram, que o velho se tornou irresponsavelmente comunicativo. Arrancado de seu reservismo, o pobre Atal começou a falar livremente sobre coisas proibidas e contou-lhe de uma grande imagem que, de acordo com os viajantes, está esculpida na sólida rocha do Monte Ngranek na ilha de Oriab , lá no Mar do Sul; e deu-lhe a entender que era possivelmente um retrato que os deuses da terra deixaram de seu semblante nos dias que dançavam à luz da lua no topo daquela montanha. E acrescentou que as características dessa imagem são muito estranhas, de forma que podem ser perfeitamente reconhecidas e constituíam os sinais inconfundíveis da verdadeira raça dos deuses.

A utílidade de toda essa informação se fez imediatamente aparente para Carter. Sabe-se que, disfarçados, os mais jovens dos grandes deuses se casam muitas vezes com as filhas dos homens, de modo que perto dos confins da imensidão fria, onde se ergue Kadath, os camponeses levavam todos o sangue divino. Consequentemente, a maneira de descobrir o lugar onde Kadath está localizada seria ir ver o rosto da pedra de Ngranek e reparar bem em suas características. Depois de gravá-las cuidadosamente na memória, ele teria que procurar esses traços entre os homens vivos. E onde se encontrasse os mais óbvios e notórios, seria o lugar mais próximo da morada dos deuses. E assim, o frio deserto de pedra que se extenda mais perto de estes povoados será sem dúvida aquele onde se encontra Kadath. 

Em tais regiões, pode-se aprender muitas coisas sobre os Grandes Deuses, pois aqueles que carregam o sangue podem ter herdado igualmente pequenas reminiscências de valor para um pesquisador. É possível que os habitantes dessas regiões ignorem seu parentesco com os deuses, porque aos deuses repugna tanto serem reconhecidos pelos homens que, entre estes, não há sequer um que viu os rostos deles, o que Carter comprovou mais adiante, quando tentou escalar  Kadath. No entanto, esses homens de sangue divino sem dúvida teriam pensamentos singularmente altos que seus companheiros não entenderiam, e suas canções falariam de lugares distantes e jardins tão diferentes de tudo o que é conhecido - mesmo na terra dos sonhos - que as pessoas vulgares os julgariam como tolos. Poderiam servir a Carter para revelar alguns dos velhos segredos de Kadath, ou para obter uma alusão à maravilhosa cidade do pôr-do-sol que os deuses mantêm em segredo. Além disso, se a ocasião surgisse, ele poderia usar como refém algum filho amado dos deuses, ou mesmo capturar um jovem deus daqueles que vivem disfarçados entre os homens, casados ​​com belas camponesas. 

Mas Atal não sabia como Carter poderia chegar ao Monte Ngranek na ilha de Oriab e aconselhou-o a seguir o curso do Skai, por sob as pontes, até seu desembocar no mar do sul, onde nenhum habitante de Ulthar chegou, mas de onde os comerciantes vêm em barcos ou em longas caravanas de mulas e vagões de rodas pesadas. Alí se encontra uma grande cidade chamada Dylath-Leen, porém ela tem uma má reputação em Ulthar devido aos triremes negros que entram em seu porto carregado de rubis, provenientes de ninguém sabe qual litoral. Os mercadores que vêm nessas galés para lidar com os joalheiros são humanos, ou quase humanos, mas seus remadores nunca foram vistos. E em Ulthar não é considerado prudente lidar com esses comerciantes de navios negros que vêm de costas remotas e cujos remadores nunca saem à luz.

Depois de contar tudo isso, Atal estava sonolento. Carter colocou-o suavemente em sua cama de ébano e gentilmente ajeitou sua longa barba em seu peito. Quando ele partiu na estrada, observou que não lhe  seguiam nenhum ruído sombrio, e se  perguntou por que razão os zoogs  teriam abandonado sua curiosa perseguição. Então ele notou que todos os gatos lustrosos e complacentes de Ulthar lambiam seus bigodes com entusiasmo incomum e lembrou-se dos grunhidos distantes e dos gemidos que haviam sido ouvidos na parte inferior do templo enquanto ele estava envolvido com a conversa do velho sacerdote. Ele lembrou também a maneira malévola e faminta na qual um jovem, e especialmente imprudente, Zoog encarou um pequeno gatinho preto na rua de paralelepípedos do lado de fora. E como ele não amava nada na terra mais do que pequenos gatinhos pretos, ele se abaixou e acariciou os elegantes gatos de Ulthar enquanto se lambiam e não se lamentou que os Zoogs não o acompanhassem mais.

Como o sol estava se pondo, Carter se instalou em uma antiga pousada em uma pequena rua íngreme com vista para a parte inferior da cidade. Ele saiu para a varanda de seu quarto e, olhando para os telhados vermelhos, os caminhos de paralelepípedos e os encantadores campos que se estendiam ao longe, pensou que tudo formava um conjunto doce e fascinante sob a sagrada luz do entardecer, e que Ulthar seria, sem dúvida, o lugar mais maravilhoso para se viver, não fosse pela lembrança daquela grande cidade do pôr-do-sol que constantemente o empurrava para perigos desconhecidos. Já era a noite; As paredes e as cúpulas cor-de-rosa tornaram-se violetas e místicas, e, atrás das muitas janelas antigas, pequenas luzes amarelas começaram a acender. Os sinos da torre do templo tocaram harmoniosamente lá em cima, e a primeira estrela surgiu suavemente sobre os prados do Skai. Com a noite vieram as músicas, e Carter assistiu em silêncio enquanto os violonistas louvavam os tempos antigos além das varandas requintadas e dos pátios embutidos de Ulthar. E sem dúvida poderia-se ter presenciado a mesma doçura nos miados dos gatos, não estivessem eles tão fartos e silenciosos por causa de seu estranho banquete. Alguns deles entraram furtivamente nos reinos escondidos que só os gatos conhecem e que, de acordo com os habitantes locais, se encontram no lado negro da lua, que eles escalam desde os telhados das casas mais altas. Mas um gatinho preto entrou no quarto de Carter e saltou para o seu colo para brincar e ronronar, e enrolou-se aos seus pés quando ele se deitou na cama pequena, cujos travesseiros estavam cheios de ervas perfumadas e soporíferas.

Na parte da manhã, Carter se juntou a um comboio de comerciantes que partiam para Dylath-Leen com a lã de Ulthar e repolhos de seus pomares férteis. E durante seis dias eles cavalgaram ao som de sinos tilintantes em uma estrada plana que rodeava o Skai; parando algumas noites nas pousadas de pitorescas aldeias de pescadores, e acampando outras sob as estrelas, ao som das canções dos barqueiros que vinham através do rio tranquilo. O país era muito bonito, com sebes e verdes bosques, cabanas graciosas e moinhos de vento octogonais. 

No sétimo dia, um borrão de fumaça pôde ser visto no horizonte, e logo em seguida as altas e negras torres de Dylath-Leen, que são construídas principalmente de basalto. Dylath-Leen, com suas finas torres angulares, parece, à distância, com um fragmento da Calçada dos Gigantes, e suas ruas são escuras e inóspitas. Há muitas tabernas marinhas de aparência sombria, perto da miríade de cais, e toda a cidade está repleta de marinheiros estranhos vindos de todas as partes da Terra e alguns de fora dela também, conforme dizem. Carter perguntou a esses homens em roupas exóticas se sabiam onde o pico de Ngranek, na Ilha de Oriab se encontrava, e descobriu que o conheciam muito bem. Vários navios traçaram a rota para Baharna, que é o porto daquela ilha, e um deles iria para lá dentro de um mês, e daquele porto, Ngranek fica a menos de dois dias de viagem de cavalo. Mas poucos viram o rosto de pedra do deus, porque está localizado na encosta mais difícil do pico de Ngranek, em cima de imensos penhascos, de onde domina um sinistro vale vulcânico. Uma vez que os deuses estavam irritados com os homens naquele lugar, e falaram sobre o assunto para os Outros Deuses. 

Foi difícil para ele reunir essa informação dos comerciantes e marinheiros das tabernas de Dylath-Leen, pois a maioria deles preferia falar sobre as galeras negras. Uma delas chegaria dentro de uma semana carregada com rubis de seu ignorado porto de origem, e as pessoas da cidade sentiram-se invadidas pelo pânico apenas por pensar em vê-las aparecerem pela foz do porto. Os comerciantes que vinham nestas galeras tinham suas bocas fora de proporção, e seus turbantes formavam duas protuberâncias para cima da testa que eram particularmente desagradáveis. Seus calçados eram o mais pequeno e estranho que já havia se visto nos Seis Reinos. Mas o pior de tudo era o assunto dos remadores nunca vistos. Essas três fileiras de remos se moviam com muita agilidade, muita precisão e vigor para ser normal; nem era normal que um navio permanecesse no porto por semanas, enquanto os comerciantes tratavam seus negócios e que durante este tempo ninguém visse sua tripulação. Aos taberneiros de Dylath-Leen não agradava isto, nem aos comerciantes e açougueiros, já que nunca trouxeram o menor número de provisões a bordo. Os comerciantes não compravam mais do que ouro e fortes escravos negros trazidos do Parg pelo rio. Essa era a única coisa que levavam estes comerciantes de facções desagradáveis ​​e remadores duvidosos. Jamais embarcaram produto algum dos açougueiros e das lojas, mas apenas ouro e musculosos negros de Parg, a quem compravam por peso. . E o cheiro que emanava dessas galeras, o cheiro que o vento carregava para as docas, era indescritível. Somente os patronos mais duros das tabernas podiam suportá-lo, a base de fumar constantemente tabaco forte. Dylath-Leen nunca teria tolerado a presença das galeras negras, se houvesse conseguido obter tais rubis por outro canal; Mas nenhuma mina de toda a terra terrestre dos sonhos os produziu como aquela.

Os cosmopolitas de Dylath-Leen falaram acima de tudo dessas coisas, enquanto Carter esperava pacientemente que o navio de Baharna o levasse até a ilha, onde os picos de Ngranek se elevavam, altos e estéreis. Durante esse tempo, ele continuou a investigar os locais frequentados por viajantes distantes, à procura de qualquer história que se referisse a Kadath, a cidade da vastidão fria, ou a maravilhosa cidade de paredes de mármore e fontes de prata que havia contemplado a partir de um elevado terraço ao cair do crepúsculo. Destas coisas, porém, ele não aprendeu nada; embora em uma ocasião teve a sensação que um determinado comerciante lhe dirigiu um olhar estranhamente brilhante ao ouvi-lo mencionar a imensidão fria. Este homem tinha a reputação de comercializar com habitantes das horríveis aldeias de pedra no gelado planalto desértico de Leng, que nenhuma pessoa sensata visitava e cujos incêndios malignos eram vistos à noite de longe. Havia inclusive rumores de ter lidado com o sumo sacerdote a não ser descrito, que usa uma máscara de seda amarela sobre o rosto e habita sozinho em um mosteiro de pedra pré-histórico. Que tal pessoa poderia muito bem ter facilitado o tráfico com seres que possivelmente residem na vastidão fria não havia duvidas, mas Carter logo descobriria que não adiantava questioná-lo.

Então a galera negra deslizou para dentro do porto, passando pela vala de basalto e o elevado farol, silenciosa e alienígena, envolta numa rara pestilência que o vento sul lançou na cidade. O desconforto percorreu as tabernas ao longo da orla e, depois de um tempo, os negros de boca larga, com turbantes e pés curtos, desembarcaram na praia em busca dos bazares dos joalheiros. Carter observou-os de perto; e quanto mais olhava para eles, mais desagradáveis​ pareciam. Então ele os viu conduzir os robustos negros de Parg até a prancha grunhindo e suando naquela galera singular, e se perguntou em que terras - ou se em qualquer terra - aquelas criaturas gordas e patéticas poderiam estar destinadas a servir.

E na terceira noite de estadia daquela galera, um dos mercadores desagradáveis ​​o confrontou, e com um sorrisso malicioso insinuou que ouvira na taverna que Carter estava fazendo certas investigações. O comerciante parecia estar ciente de coisas muito secretas para falar em público e, embora tivesse uma voz insuportavelmente odiosa, Carter sabia que o conhecimento de um viajante que vinha de tão longe não deveria ser ignorado. Por causa disso, ele o convidou para ir a um de seus quartos particulares, e ofereceu-lhe a última porção do vinho lunar dos zoogs para aforuxar-lhe a língua. O estranho mercador bebeu lentamente, mas não parou de sorrir cinicamente. Então ele pegou uma garrafa rara que trouxera consigo, e Carter teve a chance de ver que era um rubi oco, grotescamente esculpido em padrões muito fabulosos para serem compreendidos. O comerciante ofereceu esta garrafa a seu anfitrião e, embora Carter tenha bebido apenas um gole, sentiu imediatamente a vertigem do vazio e a febre de selvas inimagináveis. O convidado não deixou de sorrir por um momento sequer, mas a cada vez fazendo isso com mais atrevimento. Quando Carter foi finalmente consumido pela escuridão, a última coisa que viu foi o rosto sinistro contorcido por uma risada perversa, e uma coisa totalmente inconcebível que surgiu a partir de uma das protuberâncias frontais do turbante alaranjado que se desenrolou dada as sacudidelas daquela risada epiléptica.

Carter recobrou a consciência em meio a odores fétidos sob um toldo semelhante a uma tenda no  convés de um navio, e viu como as maravilhosas águas do Mar do Sul deslizavam pela margem com uma rapidez anormal. Ele não estava acorrentado, mas três mercadores sardônicos e sorridentes estavam por perto, e a visão daquelas corcundas em seus turbantes o fez quase tão fraco quanto o fedor que emanava através das sinistras escotilhas. À sua frente, ele viu passar as gloriosas terras e cidades das quais um amigo sonhador da terra - um faroleiro de um antigo porto - descrevera com frequência nos velhos tempos, e reconheceu os terraços de Zak, morada de sonhos esquecidos; as torres do infame Thalarion, aquela cidade-diabólica de milhares de maravilhas onde reina o ídolo Lathi; os jardins ossuários de Zura, terra dos prazeres não realizados, e os promontórios gêmeos de cristal, que se interligam no alto em um arco resplandecente, guardando o porto de Sona-Nyl, a abençoada terra da imaginação.

Passadas todas essas terras suntuosas, o barco mau-cheiroso navegou com pressa inquietante, impulsionado pelos movimentos anormalmente velozes de seu invisíveis remadores. E antes que o dia terminasse , Carter percebeu que o timoneiro não estava a realizar outro curso que não os pilares de basalto do Oeste, além de onde os crédulos dizem estar a ilustre Cathuria, mas que sonhadores mais sábios bem sabem serem estes pilares os portões de uma catarata monstruosa onde todos os oceanos da terra dos sonhos (Dreamland) da Terra mergulham no abismo do nada e atravessam os espaços em direção a outros mundos e outras estrelas e os terríveis vazios fora do universo ordenado onde o demônio sultão Azathoth corrói faminto no Caos em meio a batida e flautas, e a infernal dança dos Outros Deuses, cegos, mudos, tenebrosos e estúpidos, cuja alma e mensageiro é Nyarlathotep

Enquanto isso, os comerciantes sardonicos não disseram sequer uma palavra acerca de suas intenções, mas Carter sabia muito bem que deviam estar em cumplicidade com aqueles que desejavam impedi-lo em sua busca. Sabe-se na terra dos sonhos que os Outros Deuses têm muitos agentes movendo-se entre os homens; e todos esses agentes, sejam humanos ou quase humanos, estão ávidos por trabalhar a vontade dessas coisas cegas e irracionais em troca dos favores que sua horripilante alma e mensageiro , o caos rastejante Nyarlathotep, possa oferecer. Assim sendo, Carter deduziu que os mercadores corcundas dos turbantes, sabendo de sua ousada busca pelos Grandes no castelo de Kadath, decidiram raptá-lo e entregá-lo a Nyarlathotep a fim de obter qualquer recompensa inominável que pudesse ser oferecida por tal prêmio. Qual haveria de ser o destino daqueles mercadores, seja em nosso universo conhecido ou nos temíveis espaços exteriores, Carter não era capaz de adivinhar; Tampouco suspeitava em que ponto infernal eles encontrariam o caos rastejante para entregá-lo e exigir sua recompensa. Sabia, no entanto, que nenhum ser quase humano como aqueles, se atreveria a aproximar-se do trono da escuridão final, Azathoth, lá no centro do vazio sem forma.

Ao pôr do sol, os comerciantes começaram a lamber seus enormes lábios, com olhos famintos. Um deles desceu para algum compartimento oculto e enojante e retornou com uma panela e uma cesta de louças. Sentaram-se juntos debaixo da tenda e comeram carne defumada, que passaram um para o outro. Mas quando deram a Carter um pedaço, ele descobriu, por causa de seu tamanho e forma, algo terrível; de modo que ele ficou ainda mais pálido do que antes e lançou essa porção no mar quando nenhum olho estava sobre ele. E novamente ele pensou naqueles remadores, invisíveis, abaixo e na comida suspeita da qual eles extraíam sua tremenda força muscular. 

Era noite quando a galera passou entre os pilares basálticos do oeste, e o barulho da última catarata  tornou-se ensurdecedor, o borrifo daquela catarata se ergueu de tal forma que obscureceu o clarão das estrelas, o convés ficou úmido, e o navio estremeceu, fustigado pela corrente furiosa da beira do abismo. Então, com um estranho assobio e um único impulso, o navio deslizou para o vazio, e Carter sentiu um ataque de terror indizível ao notar que a terra ruía sob a quilha, e asim o navio disparou silencioso, como um cometa, para o espaço planetário. Carter nunca até então havia tido conhecimento dos seres negros disformes que se escondem e se contorcem através do éter, gesticulando e assediando qualquer viajante que possa passar , e as vezes tateanto com suas patas viscosas qualquer objeto móvel que excite a sua curiosidade. Eles são as larvas dos Outros Deuses, que, como eles, são cegas e carecem de espírito, e são possuídas por uma fome e sede sem limites.

Mas o destino daquela galera horrenda não era tão longe quanto Carter imaginara, pois logo comprovou que o timoneiro havia traçado o curso para a lua. A lua era um crescente que brilhava cada vez mais à medida que se aproximavam, e exibia desconfortavelmente suas singulares crateras e picos inóspitos. O navio chegou ao seu limite, e logo ficou claro que seu destino era aquele lado secreto e misterioso que está sempre afastado da terra, e que nenhuma pessoa completamente humana, exceto talvez o sonhador Snireth-Ko, jamais viu. Quando a galera se aproximou, a aparência da lua pareceu extremamente perturbadora para Carter: ele não gostava da forma ou das dimensões das ruínas espalhadas por toda parte. Os templos mortos das montanhas foram construídos e orientados de tal maneira que, evidentemente, eles não poderiam ter servido para adorar qualquer deus comum; e na simetria das colunas quebradas parecia haver um significado sombrio e secreto que não convidava a ser desvendado.  No que diz respeito  à natureza e as proporções dos antigos adoradores desses templos Carter optou por não fazer conjecturas.

Quando o navio atravessou a borda e singrou aquelas terras desconhecidas aos homens, surgiram no estranho panorama certos sinais de vida, e Carter percebeu muitas cabanas baixas, largas e redondas em campos repletos de fungos esbranquiçados. Notou também que essas cabanas não tinham janelas, e pensou que o formato sugeria os iglus dos esquimós. Então vislumbrou as ondulações untuosas de um oceano modorrento e soube que a viagem mais uma vez seguiria pela água ou pelo menos através de um líquido. A galé bateu na superficie com um som peculiar, e a estranha maneira elástica como as ondas receberam o impacto deixou Carter um tanto perplexo. Logo depois avançaram com grande velocidade, passando e saudando uma outra galé do mesmo tipo, porém na maior parte do tempo sem ver nada além daquele estranho mar e do céu negro e coalhado de estrelas, ainda que o sol abrasador continuasse a arder no firmamento. 

De repente surgiram no horizonte as escarpas de uma costa leprosa, e Carter viu as sólidas torres cinzentas de uma cidade. A maneira como estavam recurvadas, o modo como se amontoavam e a total ausência de janelas foram muito inquietantes para o prisioneiro, que lamentou o desatino que o levara a provar o curioso vinho do mercador com o turbante saliente. À medida que a costa se aproximava e o horrendo fedor da cidade ganhava intensidade, viu inúmeras florestas no alto das escarpas, bem como certas árvores que pareciam ter alguma relação com a solitária árvore lunar no bosque encantado na Terra, de cuja seiva fermentada os pequenos zoogs marrons produzem um vinho peculiar.

Carter pôde distinguir figuras em movimento nos abjetos cais mais à frente, e quanto melhor os via, maiores eram o temor e a repulsa que sentia. Pois não eram homens ou sequer humanoides; eram enormes criaturas branco-acinzentadas e pegajosas capazes de expandirem-se e contraírem-se à vontade, e cuja forma predominante embora sofressem constantes mutações era uma espécie de sapo desprovido de olhos, dotado de uma curiosa massa fremente repleta de curtos tentáculos rosados na ponta do vago e grosseiro nariz. Esses objetos cambaleavam pelos cais, transportando fardos e caixas e caixotes com uma força sobrenatural, de vez em quando entrando ou saindo aos pulos de uma galé ancorada com longos remos nas patas dianteiras. As vezes uma criatura aparecia conduzindo um bando de escravos amontoados que de fato eram aproximações de seres humanos, com bocas largas como as dos mercadores que faziam comércio em Dylath-Leen; porém esses bandos, por estarem sem turbantes nem sapatos nem roupas, não pareciam tão humanos afinal de contas. Alguns escravos — os mais gordos, que uma espécie de capataz beliscava à guisa de experimentação — foram descarregados dos navios e pregados no interior de caixas que outros trabalhadores empurravam para dentro de galpões baixos ou caregavam em enormes e ponderosos carroções. 

Em um dado momento um dos carroções foi atrelado e partiu, e a coisa fabulosa que o dirigia fez com que Carter tivesse um forte sobressalto, mesmo depois de ver as outras monstruosidades daquele lugar odioso. Vez ou outra um pequeno grupo de escravos com trajes e turbantes similares aos dos mercadores obscuros eram conduzidos a bordo de uma galé, seguidos por uma grande tripulação dos batráquios cinzentos e pegajosos que ocupavam as funções de oficiais, navegadores e remadores. E Carter viu que as criaturas humanoides eram empregadas nos tipos mais ignominiosos de servidão, que não requeriam nenhum vigor físico, como guiar o navio, preparar comida, transportar pequenos objetos e barganhar com os homens da Terra ou de outros planetas onde mantivessem comércio. Essas criaturas teriam sido convenientes na Terra, pois a bem dizer não eram muito diferentes dos homens quando trajavam roupas e calçados e turbantes, e sabiam regatear nas lojas dos homens sem nenhum constrangimento e sem explicações curiosas. Porém, a maioria das criaturas, salvo aquelas magras ou desfavorecidas, foram despidas e postas em caixotes e levadas em ponderosos carroções por coisas fabulosas. De vez em quando outros seres eram descarregados e encaixotados; alguns muito similares aos humanoides, outros nem tanto, e ainda outros nem um pouco. E Carter perguntou-se se algum dos pobres negros rotundos de Parg seria descarregado e encaixotado e embarcado rumo ao continente nos carroções 

Quando a galé aportou em um cais de aspecto graxento entalhado em pedra esponjosa, uma horda de coisas batráquias saídas de um pesadelo esgueirou-se pelas escotilhas, e duas dessas criaturas pegaram Carter e o arrastaram para terra. O cheiro e o aspecto da cidade desafiavam qualquer descrição, e Carter reteve apenas imagens fragmentárias das ruas calçadas e dos vãos negros nas portas e dos intermináveis precipícios verticais de paredes cinzentas e desprovidas de janelas. Por fim foi arrastado ao interior de uma porta um tanto baixa e obrigado a galgar infinitos degraus em uma escuridão de breu. Segundo tudo indicava, para as coisas batráquias pouca diferença fazia se estivesse claro ou escuro. O odor do lugar era intolerável, e quando foi trancafiado sozinho em um cômodo Carter mal teve forças para se arrastar ao redor e investigar o formato e as dimensões do recinto. Era circular e tinha aproximadamente seis metros de diâmetro. 

A partir daquele momento o tempo deixou de existir. De vez em quando uma porção de comida era empurrada para dentro da câmara, porém Carter não a tocava. Não tinha a menor ideia de que destino o levaria; mas sentia que estava sendo retido para a chegada do terível espírito e mensageiro dos Outros Deuses da infinitude, o caos rastejante Nyarlathotep. Por fim, depois de um intervalo de horas ou de dias insabidos, a grande porta de pedra tornou a se abrir e Carter foi empurrado pela escada em direção às ruas de iluminação vermelha naquela temível cidade. Era noite na lua, e por todo vilarejo havia escravos empunhando archotes 

Em uma esplanada medonha, uma espécie de procissão estava formada: eram dez coisas batráquias e 24 criaturas humanoides de archote em punho, onze de cada lado, uma na frente e uma atrás, Carter foi posto no meio da formação, com cinco coisas batráquias à frente e outras cinco atrás, e um humanoide de archote em punho em cada lado. Algumas das coisas batráquias sacaram flautas de marfim ornadas com entalhes repugnantes e começaram a produzir sons odiosos. No ritmo daqueles sopros infernais a coluna deixou para trás as ruas calçadas e avançou rumo às planícies noctíferas de fungos obscenos a fim de escalar uma das colinas mais baixas e mais graduais logo atrás da cidade. Carter não tinha a menor dúvida de que em uma encosta terrível ou em um blasfemo platô o caos rastejante estaria à espreita; e desejou que o suspense acabasse o quanto antes. Os lamentos daquelas flautas ímpias eram chocantes, e teria dado o mundo em troca de um som remotamente normal; porém as coisas batráquias eram desprovidas de voz, e os escravos permaneciam em silêncio. 

De repente, em meio à escuridão coalhada de estrelas, fez-se ouvir um som normal. Veio desde as colinas mais altas e ecoou por todos os picos escarpados ao redor no crescendo de um coro demoníaco. Era o grito noturno de um gato, e Carter soube enfim que os velhos habitantes do vilarejo estavam certos quando especularam a meia-voz sobre os crípticos reinos conhecidos somente pelos gatos, e para onde os felinos mais velhos dirigem-se com passos furtivos à noite, saltando desde os telhados mais altos. Em verdade, é para o lado escuro da lua que os gatos vão para saltar e brincar nas colinas e entabular conversas com sombras antigas, e em meio àquela coluna de coisas fétidas Carter escutou o grito familiar e amigável e pensou nos telhados ingremes e nas lareiras aconchegantes e nas janelas iluminadas das casas. 

Randolph Carter conhecia bem a língua dos gatos, e assim tratou de proferir o grito adequado naquele lugar distante e terrível. O grito, no entanto, não seria necessário; pois assim que abriu os lábios Carter percebeu que as vozes do coro ganhavam intensidade à medida que se aproximavam, e em seguida viu sombras ligeiras obscurecerem as estrelas enquanto pequenas formas graciosas pulavam de colina em colina em legiões cada vez maiores. O chamado do clã havia soado, e antes que houvesse tempo para sentir medo uma nuvem de pelos sufocantes e uma falange de garras assassinas abateu-se como o mar revolto ou como uma tempestade sobre a horrenda procissão. As flautas calaram-se e gritos ecoaram noite afora. Os humanoides moribundos gritavam, e os gatos cuspiam e miavam e bufavam, mas as coisas batráquias não faziam nenhum som quando a fétida sânie verde escorria de maneira fatal pela terra porosa coberta por fungos obscenos. 

Foi uma visão impressionante enquanto ainda havia archotes, e Carter jamais tinha visto tantos gatos juntos. Pretos, cinzentos e brancos; amarelos, tigrados e malhados; comuns, persas e Manx; tibetanos, angorás e egípcios; todos reunidos na fúria da batalha e cingidos pela aura de profunda e inviolável santidade que enaltece a deusa protetora dos gatos nos templos de Bubástis. Pulavam sete ao mesmo tempo no pescoco de um humanoide ou no focinho tentaculado de uma coisa batráquia e derrubavam a vítima sobre a planície fúngica, onde miríades de felinos cobriam-na e investiam com garras e dentes no frenesi de uma fúria divina. Carter havia tomado o archote de um escravo abatido, mas logo foi arrastado pelas ondas impetuosas de seus leais protetores. Permaneceu então na mais absoluta escuridão, ouvindo o clamor da batalha e os gritos dos vitoriosos enquanto sentia as patas macias dos amigos que passavam de um lado para o outro na escaramuça. 

Por fim o espanto e a exaustão fecharam-lhe os olhos, e quando tornou a abri-los se deparou com uma estranha cena. O grande disco luminoso da Terra, cerca de treze vezes maior do que a lua tal como a vemos, havia se erguido com torrentes de uma estranha luz para acima da paisagem lunar; e por todas aquelas léguas de platô selvagem e de cristas escarpadas havia um interminável mar de gatos dispostos em formação. Eram círculos e mais círculos, e dois ou três líderes que haviam deixado as fileiras lambiam-lhe o rosto e ronronavam a fim de reconfortá-lo. Não havia sobrado muitos resquícios dos escravos e das coisas batráquias, mas Carter imaginou ter visto um osso a uma pequena distância no espaço vazio entre o lugar onde estava e o início do denso círculo de guerreiros. 

Então Carter falou com os líderes na suave língua dos gatos e descobriu que a antiga amizade que mantinha com a espécie era famosa e muitas vezes mencionada nos lugares onde os gatos congregam-se. Não haviam deixado de notá-lo durante a passagem por Ulthar, e os velhos gatos lustrosos recordaram-se de como os havia afagado depois que afastaram os zoogs famintos que lançavam olhares maldosos em direção a um gatinho preto. Lembraram-se também de como havia recebido o gatinho que fora visitá-lo na estalagem, e de que havia lhe oferecido um deliciosa tigela de leite na manha da partida. O avô daquele pequeno gatinho era o líder do exército reunido naquele instante, pois tinha avistado a terrível procissão a partir de uma colina longínqua e reconhecido o prisioneiro como um amigo jurado da espécie felina tanto em nosso planeta como na terra dos sonhos. 

De repente um miado soou em um pico mais afastado e o velho líder interrompeu a conversa. Era um dos integrantes do exército, estacionado em um posto avançado na mais alta montanha lunar para observar o único inimigo temido pelos gatos terrestres: os enormes e peculiares gatos de Saturno, que por algum motivo não permaneceram alheios aos encantos no lado escuro da nossa lua. Esses felinos têm um tratado com as malignas coisas batráquias e adotam um comportamento notoriamente hostil em relação aos gatos terrestres, e naquele momento um confronto seria motivo de graves preocupações 

Depois de uma breve consulta aos generais os gatos se ergueram e adotaram uma formação mais cerrada, reunindo-se ao redor de Carter e preparando-se para o grande salto através do espaço que os levaria de volta aos telhados do nosso planeta e às nossas terras oníricas. O velho marechal de campo aconselhou Carter a deixar-se carregar de maneira passiva e suave em meio às fileiras do exército felpudo e ensinou-o a saltar quando os outros saltassem e a aterrissar com graça quando os outros aterrissassem. Também se dispôs a deixá-lo em qualquer lugar que desejasse, e Carter decidiu-se pela cidade de Dylath-Leen, de onde a galé negra havia partido; pois de lá pretendia zarpar com destino a Oriab e à crista entalhada de Ngranek para solicitar aos habitantes da cidade que cessassem o comércio com as galés negras se de fato esse comércio pudesse ser interrompido de maneira cordial e judiciosa. Então, mediante um sinal, todos os gatos deram um gracioso salto com o amigo protegido no meio da bichanada enquanto, em uma caverna escura no longínquo cume profano das montanhas lunares, o caos rastejante Nyarlathotep aguardava em vão. 

O salto dos felinos através do espaço foi muito veloz; e estando rodeado pelos companheiros, dessa vez Carter não viu as colossais informidades negras que espreitam e pulam e arrastam-se no abismo. Antes que percebesse por completo o que havia acontecido, estava de volta ao familiar quarto da estalagem em Dylath-Leen, e os furtivos e amistosos gatos saíam pelas janelas aos borbotões. O velho líder de Ulthar foi a último a sair e, enquanto Carter apertava-lhe a pata, disse que estaria de volta com o cantar do galo. Quando a aurora raiou, Carter desceu a escada e descobriu que uma semana havia passado desde a captura e a partida. Ainda teria de esperar quase duas semanas pelo navio com destino a Oriab, e durante esse tempo disse tudo quanto podia contra as galés negras e seus estratagemas infames. A maioria dos habitantes do vilarejo deram-lhe um voto de confiança; mas o apreço dos joalheiros por aqueles enormes rubis impediu que prometessem cessar o comércio com os mercadores de boca larga. Se algum infortúnio um dia abater-se sobre Dylath-Leen por conta desse comércio, não será por culpa de Carter.

Após cerca de uma semana o navio esperado arribou próximo ao molhe negro e ao alto farol, e Carter alegrou-se ao ver que era uma embarcação de homens sadios, com os costados pintados, velas latinas amarelas e um capitão grisalho envolto em mantos de seda. O navio transportava a fragrante resina dos mais profundos vales de Oriab, e as delicadas cerâmicas produzidas pelos artistas de Baharna, e as pequenas e singulares imagens esculpidas na lava ancestral de Ngranek. As mercadorias eram pagas com a lã de Ulthar e com os têxteis iridescentes de Hatheg e com o marfim que os negros entalham na outra margem do rio em Parg. Carter fez um trato com o capitão para ir até Bahama e foi informado de que a viagem levaria dez dias. Durante a semana de espera falou bastante com o capitão de Ngranek e descobriu que pouquíssima gente tinha visto o rosto entalhado, e também que muitos viajantes limitavam-se a escutar as lendas daquela terra conforme eram contadas pelos velhos e pelos coletores de lava e entalhadores de imagens em Baharna, embora ao voltar para casa dissessem que o haviam contemplado. O capitão não sabia nem ao menos se existia alguma pessoa viva que tivesse contemplado o rosto entalhado na rocha, pois aquela encosta de Ngranek é muito sinistra e escarpada e inóspita, e existem rumores sobre cavernas próximas ao pico onde habitam os noctétricos. Mas o capitão não quis dizer como eram os noctétricos, uma vez que estes seres costumam assombrar os sonhos dos que pensam com demasiada frequência a seu respeito. Então Carter perguntou ao capitão sobre a desconhecida Kadath na desolação gelada, e sobre a maravilhosa cidade do pôr do sol, mas quanto a essas o bom homem realmente nada sabia. 


Obs: Esta tradução é autoral. E foi feita por mim baseada na edição original em inglês e na tradução pro espanhol.

Glossário

Archotes - Pedaço de madeira com a extremidade inflamável que, quando incendiada, ilumina, sinaliza; tocha, facho.

Bubástis - Também conhecida em árabe como Tel Basta ou em egípcio como Per-Baste, foi uma cidade do Antigo Egito.

Batráquio - Relacionado ou particular às rãs ou aos sapos.

Borbotões - É o plural de Borbotão. Jato de algo que sai intensa e volumosamente.

Cingido - Abraçado ou envolvido com muita força.

Crescendo - Aumento progressivo da intensidade sonora.

Costados - Conjunto de chapas ou pranchas que revestem o cavername de um navio.

Escaramuça - Qualquer luta de pequenas proporções; briga, contenda.

Esguio - De espessura reduzida, alongada, afunilada; comprido, fino:

Iridescente - Que reflete as cores do arco-íris.

Lúgubre - Que provoca medo, pavor; que é medonho; sinistro.

Molhe - Paredão que se constrói nos portos de mar em forma de cais, para protegê-los da violência das águas; quebra-mar.

Platô - Terreno elevado e plano com pequenas elevações; planalto.

Sânie - Matéria purulenta e fétida produzia pelas úlceras e pelas feridas sem tratamento.

Tigrado - Raiado, como a pelagem do tigre.

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