O Caos e os Arquétipos: Os conceitos que fundamentam o universo de Lovecraft

Esta talvez seja, minha obra prima dentre todos os artigos da ficção fantástica de Lovecraft que tenho me dedicado durante anos. A que mais me orgulho e sinto que realmente é original, pois as referências que se encontram aqui fazem parte de algo que não havia sido posto em pauta por ninguém até o presente momento, e que, espero, abre uma porta para uma nova perspectiva e enriquece ainda mais essa incrível obra literária que são os "Mythos".

O universo criado por Howard é riquíssimo de conteúdo, desde referências e influências externas à cenários e locais totalmente originais e detalhados. Em sua biografia e notas ele nunca negou sua paixão pelas mitologias e sua admiração por certos escritores, alguns deles que influenciaram fortemente em sua obra. No entanto, muitas dessas referências não foram comentadas diretamente por ele, mas demonstradas ou citadas em alguns de seus contos e é graças a eles que podemos ter um entendimento quase completo sobre os conceitos que fundamentam o universo singularmente fantástico dos Mythos, dentre estas podemos citar:

- O Akasha, do Hinduísmo;

- O Khaos, da mitologia grega;

- A Teosofia, da Doutrina sagrada de Helena Petrovna Blavatsky

- O Livro T, da ordem hermética da aurora dourada;

- O Timeu, de Platão;

- Os Arquétipos, de Carl Gustav Jung e Platão; e por fim mas não menos importante;

- The Gods of Pegana, de Lord Dunsany

Após ter lido e relido inúmeras vezes boa parte do acervo de contos de Lovecraft e identificado todas estas referências e influências, algumas explicitas, outras sutis, eu finalmente consegui unificar todas elas em um só artigo e relacioná-las entre si para que se encaixassem como peças de um quebra cabeça.

Para começarmos a entender como estas referências externas se relacionam com os Mythos, é necessário ter a compreensão de que o principal elemento nos contos de Lovecraft é o cosmicismo, cujo conceito é basicamente, um "Kosmos" que nasce essencialmente da ausência de sentido ou propósito. A causa sui (causa de si / causa primeira) do universo dos Mythos é o Caos primordial, cujo principal conceito é a indiferenciação, ou "desordem". Azathoth, o Caos primordial, é absolutamente indiferente à sua criação, ele não é bom, não é mal, e nem justo, e os deuses que ele criou, habitam e operam numa escala muito maior e além da dimensionalidade e pouco estão interessados na humanidade e sua insignificância.

Outro elemento central nos Mythos são os sonhos, há inclusive estudos que demonstram que Lovecraft sonhava o que escrevia, era de fato um sonhador muito sensível, de modo que boa parte de seu panteão e das criaturas que ele menciona podem ter simplesmente surgido em seus sonhos. E é por isto que ao me deparar com o termo "Arquétipo" nos seus contos eu imediatamente relacionei isto a Jung, cujo estudo, já avançado, sobre o inconsciente coletivo ocorriam quase na mesma época que vivia Lovecraft. Pesquisando um pouco mais eu confirmei que Howard não era alheio à obra de Jung, e até tinha se aprofundado um pouco no trabalho deste psicanalista, cujo nome acabou sendo mencionado com dado respeito em um de seus contos, "A armadilha":

"[...]Não se estranhará que eu tenha dormido com um desejo urgente de estabelecer algum tipo de comunicação mental com o menino desaparecido. Até mesmo os cientistas mais prosaicos, como Freud, Jung e Adler, afirmam que a mente subconsciente está aberta a impressões externas durante o sono. Entretanto tais impressões raramente são levadas em conta no estado desperto."

No entanto, quando vemos o cenário mais amplamente, não é Jung cuja obra mais impactou a cosmogonia de Lovecraft, mas Platão, e seu mundo das Idéias Eternas. No post sobre Yog-Sothoth que eu falo sobre como é impossível não fazer um pararelo entre a semelhança dos arquétipos de Jung com o mundo das ideias de Platão, que inegavelmente exerceu influência sobre seu raciocínio, algo que Samuels, um estudioso do trabalho de Jung, evidencia:

"Platão fala de ideias originais, das quais são derivadas toda a matéria e as ideias subsequentes. Essas ideias estariam junto dos deuses antes da criação do mundo; por isso, as ideias platônicas precedem a experiência. Mas há uma distinção básica: uma faceta da abordagem de Jung é que os arquétipos promovem experiências fundamentais de vida. Contudo as formulações posteriores de Jung incorporam um elemento transcendente segundo o qual os arquétipos estão de alguma maneira além do tempo e do espaço."

O Timeu é a obra em que é apresentada a cosmogênese Platônica que é baseada em um dualismo ontológico. Timeu é um dos diálogos de Platão, com um longo monólogo do personagem-título, escrito por volta de 360 a.C. O trabalho apresenta a especulação sobre a natureza do mundo físico e os seres humanos. É seguido pelo diálogo Crítias.

Segundo Platão haveria uma realidade superior ao mundo sensível, uma dimensão que está além da física. Antes com os filósofos da physis, o princípio originário era pensado apenas como um elemento sensível, físico como é o caso de Tales de Mileto, que atribui ao elemento “água” a arché universal do cosmo. Platão com seu pensamento deu um longo avanço apontando as verdadeiras causas desse mundo como algo além do que se pensava antes, isto é, além do sensível.

Para chegar à conclusão do mundo inteligível, Platão percebeu duas coisas. A primeira é que para se falar de uma ideia era necessário explicar o porquê, um exemplo é o do belo. Para explicar a origem deste é necessário recorrer a elementos da física, tais como, cor, figura e outros. Sendo assim, ele pensou que devia haver uma ideia, em si, que é a causa verdadeira de todas as outras. No caso do exemplo, que é o fundamento de toda a ideia do que é belo e da qual as outras participam, essa ideia que, por isso, deve ser inteligível e uma forma pura.

Como foi dito, Platão divide a realidade em duas: o mundo sensível e o inteligível. O primeiro é o qual se habita atualmente e é acessível pelos sentidos; ao contrário, o segundo só é acessado pelo intelecto

As coisas reais, verdadeiras, que Timeu chama Ideias (ou Formas), eram as entidades imutáveis, eternas, perfeitas, sempre iguais a si mesmas.

Assim, contrastando com o Mundo sensível das coisas materiais, havia o Mundo das Ideias eternas e perfeitas. Embora imaterial, este era um Mundo real e verdadeiro, do qual o Mundo sensível era apenas uma caricatura ou simulacro.

A criação do universo na concepção platônica é dada da seguinte forma em "Timeu":

"Na minha opinião, temos primeiro que distinguir o seguinte: o que é aquilo que é sempre e não devém, e o que é aquilo que devém, sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão pois é imutável. Ao invés, o segundo é objecto da opinião acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devém e se corrompe, não pode ser nunca. 

Ora, tudo aquilo que devém é inevitável que devenha por alguma causa, pois é impossível que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa. Deste modo, o demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria. É inevitável que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo. Se, pelo contrário, pusesse os olhos no que devém e tomasse como arquétipo algo deveniente, a sua obra não seria bela. 

Quanto ao conjunto do céu ou mundo – ou ainda, se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado, chamemos-lhe esse –, temos que apurar primeiro, no que lhe diz respeito, aquilo que subjaz a todas as questões e deve ser apurado logo no princípio:

Se sempre foi, sem ter tido origem no devir, ou se deveio, originado a partir de algum princípio. Deveio, pois é visível e tangível e tem corpo, assumindo todas as propriedades do que é sensível; e o que é sensível, que pode ser compreendido por uma opinião fundamentada na percepção dos sentidos, devém e é deveniente, como já foi dito. Dissemos também que o que devém é inevitável que devenha por alguma causa. Porém, descobrir o criador e pai do mundo é uma tarefa difícil e, a descobri-lo, é impossível falar sobre ele a toda a gente. 

Mas ainda quanto ao mundo, temos que apurar o seguinte: aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arquétipos: daquele que é imutável e inalterável ou do que devém. Ora, se o mundo é belo e o demiurgo é bom, é evidente que pôs os olhos que é eterno; se fosse ao contrário – o que nem é correcto supor –, teria posto os olhos no que devém. Portanto, é evidente para todos que pôs os olhos no que é eterno, pois o mundo é a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo é a mais perfeita das causas. Deste modo, o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pôs os olhos no que é imutável e apreensível pela razão e pelo pensamento."

O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas, introduzindo no caos a alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (idéia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião verdadeira.

Assim, entendemos disso que o Demiurgo é o responsável pela criação, ou organização, mas que ele apenas criou a realidade sensível, a partir das ideias do mundo inteligível que já existiam, pois segundo Timeu as ideias existem "em si" e "por si" mesmas, ou seja, não estão relacionadas a nenhum sujeito particular, são eternas. Também vemos que a figura do Demiurgo é pressuposta como um ser totalmente bom e perfeito, e sua criação, bela. 

As Ideias, na cosmogonia platônica, estão disposta hierarquicamente, e no topo de todas elas está o Arquétipo supremo que é o bem, cuja toda realidade se espelha e por isso é bela. No entanto, o Timeu não determina uma causa primeira ou existencia suprema. Nos é apresentado o Caos, o demiurgo e as idéias (os Arquétipos), sendo o Caos o pano de fundo e espaço em que serão espelhadas e inseridas as ideias originais e o demiurgo o agente que irá efetuar esse processo, um organizador. No entanto Caos e Arquétipos e Demiurgo são coeternos, e este último que poderia ser visto como causa sui, se retira após terminar a criação, demonstrando assim ser finito. 

Nos "Mythos de Cthulhu" existem sim os Arquétipos transcendentes à realidade, no entanto nenhum deles podem ser descritos como bons ou mals, na realidade estão muito além destas concepções. Não há também, coeternidade, somente a abstração Absoluta (a quem se convém chamar de Azathoth) é eterna, imutável, infinita e perfeita. 

Os Arquétipos são os fundamentos e pilares do Caos no que "antecede" um novo ciclo cósmico, mas não são eternos de fato, e para entendermos como e porque temos que mergulhar novamente no entendimento acerca das perfeições divinas. Um dos atributos do absoluto, é a sua Completude (também chamado de perfeição). Perfeito, de acordo com o dicionário, é aquilo que não tem defeitos; ideal, impecável; excelente. Que está terminado; sem falhas, lacunas; completo, absoluto, total.

Em "Through The Gates of The Silver Key (Através dos portões da chave de prata)" há uma passagem que nos ensina que não há mudança dentro da infinidade absoluta que é o universo (Azathoth) e que tempo e mudança são ilusões geradas pela perspectiva limitada de seres limitados dimensionalmente:

"O tempo, as ondas continuaram, está imóvel e sem começo nem fim. Que tem movimento e é a causa da mudança é uma ilusão. Na verdade, é em si mesmo uma ilusão, pois, exceto para a visão estreita dos seres em dimensões limitadas, não existem coisas como passado, presente e futuro. Os homens pensam no tempo apenas pelo que eles chamam de mudança, mas isso também é ilusão. Tudo o que era e é e é para ser existe simultaneamente."

Temos comprovada então, a imutabilidade de Azathoth, sendo o ser perfeito que é, e sua perfeição advém, além de sua imutabilidade, por ser ele mesmo, o Caos Absoluto, cujo conceito vamos relembrar:

"Para os gregos, no princípio, era o Caos. Caos é a personificação do Vazio primordial, fonte de toda criação (e, portanto, anterior a ela), anterior a qualquer ordem do mundo.

Etimologicamente, caos remete a “abrir-se, entreabrir-se, significa abismo insondável.” O Caos, assim, mantém-se sempre em aberto, aberto à possibilidade da criação. Precisamente por ser possibilidade de qualquer “coisa”, de possibilitar a emergência de novas “coisas”, o Caos não pode ser uma “coisa”, ou seja, não há determinação do caos nesse mar de indeterminação, embora falar de indeterminação já seja um modo de determiná-la. Assim, Carneiro Leão nos coloca o segundo aceno da experiência grega: “o cáos não só não é uma coisa. 

O cáos é sobretudo o princípio da possibilidade de tudo. Trata-se de uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se origina tudo, que é e não é, nela se nutre toda criação em qualquer área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário ou contingente.”

Ou seja o Caos é a origem de todas as coisas, de toda criação, todas as coisas que são, que virão a ser, e também as que nunca se manifestarão. Todas as coisas existem no Caos, porém indiferenciadas pois ainda não se manifestaram, portanto o Caos é completo, ou seja perfeito.

Sendo perfeito, ele é imaterial e incorpóreo, puramente energia primordial ilimitada e absoluta, pois o que é matéria está em constante devir, sendo portanto imperfeita. Conclui-se deste raciocínio que o Caos em sua forma primária não contém matéria bruta desordenada, e sim energia indiferenciada. A possibilidade de todas as coisas, ainda que mantendo-se absolutamente em ato. E isto é possível sem que afete sua perfeição e Imutabilidade graças a Einstein e sua física revolucionária que, no século passado, abriu perspectivas jamais exploradas e imaginadas pela humanidade.

Em 1905 Einstein demonstrou que energia não é apenas uma coisa que corpos podem ou não ter. Segundo a relatividade especial, matéria e energia são interconversíveis: é possível transformar matéria (ou massa) em energia e vice-versa. Em vez de ser algo que corpos materiais têm, energia passou a ser algo que eles são. Massa é energia e energia pode ser massa. A sutileza está em como ocorre a interconversão. Segundo a fórmula, a massa m de um corpo em repouso multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz (c = 300.000 km/s) é a energia contida nessa massa.

Não pretendo me aprofundar ainda mais aqui, mas o ponto principal é que a matéria não é algo que surge inviabilizando a perfeição absoluta, ou um elemento eterno que contesta a Imutabilidade, mas sim um outro aspecto da energia que vem eternamente alterando seus estágios, o que da perspectiva mundana (a nossa) equivale a hora sendo matéria, hora sendo energia, mas que dá perspectiva divina é estas duas coisas ao mesmo tempo, uma diferenciação de sua essência infinita que desde a eternidade constituiu os infinidaveis ciclos que estão terminados em Azathoth.

Ele não mudou ao criar (Animar / manifestar / diferenciar) pois fez isso ("criou") eternamente, todos os ciclos estão encerrados nele. Mudança seria uma variação temporal, mas todos os tempos, passado e futuro e todos os universos e ciclos, da perspectiva "divina" existem simultaneamente.

No entanto, apesar de o universo dos Mythos demonstrar muitas semelhanças com a cosmogonia platônica, não foi em Platão que encontrei a reposta para a relação Azathoth-Yog-Sothoth, e para isso foi necessário que eu mergulhasse mais fundo, até chegar em Plotino, o fundador do neoplatonismo, e um dos mais influentes filósofos da antiguidade

O ponto de partida da cosmologia de Plotino está assentado no velho problema da Filosofia Grega, especialmente em Platão e Aristóteles, da relação entre mundo inteligível ao mundo sensível. Ou seja, como se dá a passagem do Uno, perfeito e imutável, do mundo espiritual à multiplicidade, imperfeita e mutável do mundo material.

Tentando superar o dualismo grego entre mundo inteligível e mundo sensível, Plotino, neoplatônico, propõe um monismo radical em que há uma passagem natural de um mundo ao outro por emanações ou processões. Assim, vê-se que apesar de um aparente dualismo, quando fala, num primeiro momento, das três hipóstases inteligíveis: o Uno, a Inteligência e a Alma do mundo e, depois, do mundo sensível; este é a ultima emanação do Uno, e a multiplicidade dos seres surgem a partir atuação da Alma do mundo sobre a matéria.

No ápice de tudo, está o Uno – Deus, que é transcendente, perfeito, eterno, infinito e necessário. Desse primeiro Princípio emana a segunda processão, a Inteligência, Espírito, Lógos ou Noûs, que é uma cópia do Uno, que, embora tenha sido engendrada imediatamente pelo Uno e, portanto, a mais perfeita de todas as processões, não tem a unidade perfeita. 

Ela marca o início do multiplicidade, pois, embora seja a processão mais próxima do primeiro Princípio, a Inteligência ou Espírito traz em si uma divisão internal por um lado ela contempla diretamente o Uno, do qual é parte e, por outro lado, ela contempla a si mesma, é razão consciente de si mesma, ou seja, ela é, ao mesmo tempo, a inteligência que pensa e é, por outro lado, Ser, enquanto é pensada. A segunda hipóstase de Plotino é correspondente à Inteligência suprema aristotélica e ao mundo das idéias platônico.

Aqui temos o retrato perfeito da cosmogonia Lovecraftiana. O Uno é Azathoth, imutável, infinito, eterno, perfeito, incriado, inefável e simples:

"Em tais viagens haviam incalculáveis perigos imprevisíveis, assim como uma terrível ameaça final: O ser que murmura abominavelmente além dos limites do cosmos ordenado, ali onde nenhum sonho pode chegar. Esta última entidade malígna e amorfa do Caos mais profundo, que blasfema no centro de toda a infinidade é o ilimitado Azathoth, o demônio sultão, cujo nome nenhum lábio se atreve a falar em voz alta, e que corrói faminto em escuras e inconcebiveis câmaras além do tempo, entre o enlouquecedor bater de tambores, e fina e monótona lamúria de flautas blasfemas"

A primeira emanação, Nóus, ou inteligência e a segunda emanação, a alma do mundo são ambas Yog-Sothoth (A segunda podendo ser interpretada como Um-Art-Tawil). 

A segunda emanação, equivalente ao mundo das idéias de Platão, é o próprio Arquétipo supremo - Yog - dentro dos Mythos, como demonstra essa passagem de "Através dos portões da chave de prata":

"Todas as linhas descendentes de seres de dimensões finitas, continuadas as ondas, e todos os estágios de crescimento em cada um desses seres, são meramente manifestações de um ser arquetípico e eterno no espaço fora das dimensões. Cada ser local - filho, pai, avô e assim por diante - e cada estágio do ser individual - bebê, criança, menino, jovem, velho - é apenas uma das fases infinitas desse mesmo ser arquetípico e eterno, causado por uma variação no ângulo do plano de consciência que o corta. Randolph Carter em todas as idades; Randolph Carter e todos os seus ancestrais humanos e pré-humanos, terrestres e pré-terrestres; todas essas foram apenas fases de um “Carter” final e eterno fora do espaço e do tempo - projeções fantasmas diferenciadas apenas pelo ângulo em que o plano de consciência cortou o arquétipo eterno em cada caso."

Na doutrina plotiniana, todas as Almas derivam da Alma Universal (ou Suprema), sendo, entretanto, Dela distintas, mas Dela, também, inseparáveis, todas, em essência, constituindo–se em uma coisa só. Plotino escreveu: 

"Do mesmo modo que a Alma de cada animal é una... do mesmo modo que a Alma sensitiva é igualmente una nos seres que sentem, e do mesmo modo que a Alma vegetativa está íntegra em cada parte dos vegetais, assim a minha Alma e a tua formam somente uma, e a Alma Universal, presente em todos os seres, é una, porque não está dividida à semelhança do corpo, mas que, onde quer que esteja [e o que quer que seja], é a mesma."

Assim, Plotino entendeu que se a Alma dos seres humanos (a minha e a tua) procedem da Alma Universal, e essa Alma sendo Una, todas as Almas serão essencialmente unas e estarão interligadas em comunicação recíproca, ainda que esta intercomunicação, na maioria das vezes, seja inconsciente e involuntária. Isto equivale a dizer que Tudo é Um e que somos todos Um. O que varia é a percepção individual consciente do Uno. 

Esta segunda emanação é muito semelhante ao conceito de "anima mundi" de Platão e equivale exatamente a descrição do Um-Art-Tawil (Um aspecto de Yog-Sothoth) também em "Através dos portões da chave de prata":

"Em face dessa terrível maravilha, o fragmento-Carter esqueceu o horror da individualidade destruída. Era o Tudo-em-Um e Um-em-Todos, de ser ilimitado e uniforme, não meramente uma coisa de um continuum espaço-temporal, mas aliado à essência animadora última da amplitude ilimitada de toda a existência; da última, amplitude absoluta sem limites, e que alcança tanto o campo da fantasia como o da matemática. Ele era, certamente, Aquele que em alguns cultos secretos da Terra eles deram o nome de Yog-Sothoth, e que tem sido uma divindade sob outros nomes, aquilo que os crustáceos de Yuggoth adoram como Beyond-One (Além de tudo; mais antigo que tudo), e os seres vaporosos da nebulosa espiral representam com um sinal intraduzível. Mas, num instante de clarividência, o fragmento-Carter compreendeu quão triviais e fracionárias são todas essas concepções."

Então, tendo introduzido e desenvolvido todos estes tópicos, posso facilmente afirmar que a maneira mais coerente e lógica de enquadrar Yog-Sothoth é como uma emanação da absoluta perfeição que é Azathoth, a primeira e quase perfeita emanação, da qual toda matéria, ser, entidade e natureza provém. 

E de bônus, apenas para efeito de confirmação, eu decidi mencionar não só Yog-Sothoth, mas todos os Arquétipos, pois parece praticamente inegável que Lovecraft se baseou em Plotino para criar seu "mundo inteligível", uma vez que os conceitos são quase idênticos. 

Vários filósofos entre Platão e Plotino foram além de Platão, interpretando as formas como ideias eternas na mente de Deus. Plotino adota esta posição e vai além de seus predecessores.

“No debate sobre o lugar e a natureza das ideias, quer dizer, sobre a relação que existe entre elas e a inteligência do Deus-demiurgo [...] Plotino interveio de maneira completamente original. A maioria dos platônicos contemporâneos acreditava que as ideias tinham uma existência autônoma, portanto, exterior ao intelecto divino; ao contrário, Plotino se colocará atrás daqueles que [....] tinham situado os arquétipos ideais diretamente no interior do espírito divino, julgando que eles eram, falando propriamente, os ‘pensamentos de Deus’”. 

“No entanto, a grande novidade foi conceber as ideias não mais somente como conteúdos ou instrumentos da inteligência divina, mas verdadeiramente como espíritos pensantes. Uma vez abolida a figura mística do Demiurgo, Plotino concedeu então a segunda hipóstase como o conjunto de uma pluralidade de entidades que são ao mesmo tempo ideias e faculdades de compreender; em suma, para ele, ser e pensamento não são mais coisas distintas ou, no melhor dos casos, unidos no mesmo lugar –o espírito divino –, mas não absolutamente idênticos” 

Não há mais um demiurgo que usa as ideias. As ideias são, elas mesmas, ‘seres vivos’, ou seja, ao mesmo tempo que são, por definição, coisas que permeiam o pensamento, são também entidades pensantes. Nisso ninguém havia pensado. Pensamento e ser estão unidos não na mente de um Deus, que pensa e o que pensa é o que existe, mas nas próprias existências relativamente autônomas das ideias.

Assim, concluo este pensamento e este artigo com o trecho análogo de "Through The Gates of The Silver Key":

"Os arquétipos, continuaram as ondas, são as pessoas do abismo final - informes, inefáveis e imaginados apenas por raros sonhadores em mundos de baixa dimensão. O principal deles era este próprio SER informador...que de fato era o próprio arquétipo de Carter. O zelo implacável de Carter e de todos os seus antepassados pelos segredos cósmicos proibidos foi um resultado natural da derivação do ARQUÉTIPO SUPREMO. Em todos os mundos, todos os grandes magos, todos os grandes pensadores, todos os grandes artistas, são facetas dele."

Lembrando que por se tratar de uma mitologia, não é preciso que pensemos a respeito da possibilidade real ou prova concreta de qualquer coisa, visto que todos os princípios são dogmas, mas apenas estabelecer uma lógica mínima coerente. Caso sintam-se confusos com a lógica apresentada ou a considerem insatisfatória eu recomendo que façam sua própria pesquisa, pois a maioria dos aspectos deste modelo cosmológico (Que assume como princípio uma causa primeira) que foi apresentado aqui não é particularidade de Lovecraft, é uma questão filosofica, metafísica e teológica que vem sendo estudada e debatida por séculos pela humanidade.

https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/ideias-de-platao-as-coisas-mudam-mas-seus-modelos-sao-eternos.htm

https://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=2651

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Timeu_(di%C3%A1logo)

https://www.pucsp.br/pos/cesima/schenberg/alunos/fernandobarreto/mundo.html

http://panaceiateoreferente.blogspot.com/2014/08/plotino-e-o-neo-platonismo.html?m=1

http://www.rdpizzinga.pro.br/livros/plot/plot.htm

Comentários

  1. Isso está incrível meu jovem, estou me aprofundando em Lovecraft aos poucos e certamente seu texto será lido por mim diversas vezes para agregar o meu conhecimento. Parabéns e siga o bom trabalho, te convido á vir conhecer o meu trabalho, em breve pretendo lançar um conto meu inspirado nas obras deste autor.

    Sinta-se á vontade em conhecer:
    https://editoralobo.wordpress.com/

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